março 30, 2017

 ©Edvard Munch | The Scream| 1910

"Meti-me na cama, abri a garrafa, enrodilhei bem a almofada atrás das costas, respirei fundo e fiquei no escuro a espreitar a janela. Era a primeira vez que estava sozinho em cinco dias. Eu era um tipo que se dava bem com a solidão; sem ela, era apenas mais um homem sem comida ou sem água. Enfraquecia a cada dia passado sem solidão. Não me orgulhava da minha solidão; mas dependia dela. A escuridão do quarto assemelhava-se à claridade para mim. Dei um gole de vinho.
    De repente, o quarto encheu-se de luz. Seguiu-se uma algazarra e um estrondo. A El passava à altura do meu quarto. Tinha passado um metro. Olhei para um friso de caras nova-iorquinas que também me olhavam. O comboio demorou-se, até que arrancou. Ficou escuro. Depois o quarto voltou a encher-se de luz. Olhei novamente para os rostos. Parecia a visão do inferno em repetição ininterrupta. Cada nova remessa de rostos era mais feia, demente e cruel do que a anterior. Dei um gole de vinho.
    A coisa continuava: escuridão e depois luz; luz e outra vez escuridão. Acabei o vinho e saí para ir buscar mais. Voltei, despi-me, enfiei-me novamente na cama. Prosseguia a chegada e partida dos rostos; tive a sensação de estar a ter uma visão. Estava a ser visitado por centenas de diabos que o Próprio Diabo não conseguia aturar. Dei mais um gole de vinho."
  
Charles Bukowski (1975) | Factotum | Alfaguara | 2017

"Levava uma mala de cartão que estava a desfazer-se. Tinha sido preta outrora, mas o revestimento preto descamara e via-se agora um cartão amarelo. Problema que eu tentara resolver colocando graxa preta por cima do cartão que estava à mostra. À medida que ia caminhando à chuva, a graxa começou a escorrer pela mala e fui esfregando inadvertidamente umas riscas em ambas as pernas das calças ao trocar a mala de uma mão para a outra."
Charles Bukowski (1975) | Factotum | Alfaguara | 2017

março 23, 2017

março 21, 2017

março 19, 2017

O teu pai é careca?

©raquelsav | Março 2017 | iPhone

março 17, 2017

©Josef Koudelka | Lebanon (Beirut) From the series Chaos |1991

GRELHA DE LINGUAGEM

O círculo dos olhos entre as barras.

Animal vibrátil a pálpebra
rema para cima,
descobre um olhar.

Íris, nadadora, sem sonhos, e turva:
o céu, cinzento-coração, deve estar perto.

Oblíqua, no bico de ferro,
a apara fumegante.
Pelo sentido da luz
adivinhas a alma.

(Fosse eu como tu. Fosses tu como eu.
Não estivemos nós
sob uma mesma monção?
Somos estranhos.)

Os ladrilhos. Sobre eles,
bem juntas, as duas
poças cinzento-coração:
duas
bocas cheias de silêncio.


SPRACHGITTER

Augenrund zwischen den Stäben.

Flimmertier Lid
rudert nach oben,
gibt einen Blick frei.

Iris, Schwimmerin, traumlos und trüb:
der Himmel, herzgrau, muß nah sein.

Schräg, in der eisernen Tülle,
der blakende Span.
Am Lichtsinn
errätst du die Seele.

(Wär ich wie du. Wärst du wie ich.
Standen wir nicht
unter einem Passat?
Wir sind Fremde.)

Die Fliesen. Darauf,
dicht beieinander, die beiden
herzgrauen Lachen:
zwei
Mundvoll Schweigen.

Paul Celan (1959) in As Escadas não têm Degraus  3 | Cotovia | 1990
 

Acto Segundo (1 + 1)  
(Versão 2.1)  Intermezzo

[A música do segundo Acto Primeiro cessou. A cortina foi fechada. De um lado, o público estarrecido. Do outro, dois corpos que repousam esgotados. Ouve-se  PLAY Fausto 
@ não se move. π arrasta-se, transpõe a cortina, ajoelhado, como quem reza.]

π: [com seriedade, em tom grave]

creio-nos em almas escancaradas,
de jangada que toma de assalto as ternuras e delícias que flutuam na desconjuntada periferia do tempo

como se ali tivessem morado sempre,
as ternuras e delícias,
revistas no tempo de sempre
em escassos cinco minutos (dos nossos)

mas não!
terão passado quatro  (ou teriam sido cinco mil?) unidades de tempo maior,
daquelas medidas pela dança da Terra à volta do Sol
     [sim, confirmei no Google a definição de um ano (dos homens)]

o tempo é-nos sempre tão confuso
e a memória comum e a arqueologia dos dias estão guardadas na magia de um clique,
talvez à matéria das almas escancaradas não lhe assista factos tão perfeitamente inúteis

mas só podem ter sido quatro (ou teriam sido cinco mil?)
unidades de tempo maior, condensadas num minuto  (do nosso encontro)

preciso-nos em almas escancaradas de gigante,
sem garantir que o trajecto da nossa luz ao vazio se faça em porções de 1/299792458 de segundo ou em qualquer outra fracção

perfeitamente maiores, seremos, pois,
nos passos do nosso encontro
à razão de sermos próximos das coisas que não se tocam,
feitos em pormenores do reflexo das árvores concretas,
que flutuam e descansam nas águas do rio
na perfeita liberdade de ser-plano
                         (à tona do mundo de Edwin Abbott)

creio-nos em almas escancaradas,
tão claras e distintas de detalhes,
na complexidade que se esbate nas coisas planas e mágicas
em plena liberdade de existência

foge-nos o vício,
da morbidez,
         (daquela a que os homens se habituaram a querer viver)
e escolhemos a matéria etérea e fugaz para existir,
em almas escancaradas ao sabor e aroma do perfume das chuvas

esgueiramo-nos, sensíveis, aos toques ímpios na água
                 (os que dissolvem a magia da revelação)
e somos de tal infinitas maneiras
que só o poema nos poderá eternizar.

sim, creio-nos em poesia!

Público: [Em coro] sim, creio!

[π transpõe, novamente, a cortina e junta-se a @.
 @, em posição flectida, tronco erguido a 90º, revela três rugas entre os olhos, manifestando no rosto expressão de zanga.]

π: [Encolhendo os ombros  e flectindo o braço, pelo cotovelo, ergue as palmas das mãos em simultâneo, viradas para @, formando um ângulo recto com o antebraço] Eu posso explicar!

Ouve-se, ao longe, PLAY Fausto.

março 10, 2017