Mostrar mensagens com a etiqueta #Juan.Gelman. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta #Juan.Gelman. Mostrar todas as mensagens

janeiro 02, 2015

Chuva

hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor/
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra/
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher/
entra em casa pela janela e não pela porta/
por uma porta entra-se em muitos sítios/
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo/
mas não no mundo/
nem numa mulher/ nem na alma
quer dizer/ nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim/
como hoje/ que chove muito
e me custa escrever a palavra amor/
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa/
e só a alma sabe onde as duas se encontram/
e quando/ e como 

mas que pode a alma explicar/

por isso o meu vizinho tem tempestades na boca/
palavras que naufragam/
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na 
mesma noite em que ele amou/
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá/
como o silêncio que existe entre duas rosas/
ou como eu/ que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva/
e à chuva/
ao meu coração desterrado



Juan Gelman, No avesso do mundo, Quetzal, 1998