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julho 04, 2024

  

©Werner Bischof | Zurich. Switzerland | 1942 | Zebra Woman

ELEGIA AZUL
Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero seu teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes

Rui Costa (1972 - 2012) Mike Tyson para principiantes: antologia poética | 2022 | Assírio & Alvim

junho 21, 2024

©Werner Bischof | 1947 | After the War A figure stands in silhouette at a circus | Hungary 

PLAY Karol Szymanowski | 9 Preludes, Op. 1: N.º 1 in B minor | Krystian Zimmerman

O ESPELHO
Sim, lembro-me dessa parede
da nossa cidade em escombros.
Projectava-se quase até ao sexto andar.
No quarto andar tinha um espelho,
um espelho inconcebível,
inteiro e bem preso à parede.

Já não reflectia o rosto de ninguém,
nem as mãos que compunham o cabelo,
nem a porta que ficava em frente,
nada que se pudesse chamar 
lugar.

Era como de estivesse de férias -
mirava-se nele o céu vívido,
nuvens em bulício no ar bravio,
a poeira dos escombros lavada por chuvas brilhantes,
pássaros em vôo, estrelas, o nascer-do-sol.

E, como todo o objecto bem fabricado,
funcionava na perfeição,
com uma profissional falta de espanto.

Wislawa Szymborska | Um inconcebível acaso | Edições do Saguão | 2023

junho 18, 2024

 

©Werner Bischof | 1948 | Finland
PLAY The Cramps | Human Fly

A primeira transformação moral fundamental do ser humano terá porventura consistido na descoberta da moral. A maioria das espécieis animais conhecem regularidades de comportamentos que permitem e promovem a coesão de grupo. Os cardumes de peixes, que parecem seguir de forma fantasmagórica um ritmo inaudível, cooperam através da conformidade; insectos sociais como as abelhas ou formigas aperfeiçoaram uma divisão de tarefas que exige, muitas vezes, o autossacrifício total do indivíduo em benefício, repectivamente, da colmeia ou colónia. A especial forma de cooperação, que moldou a moral dos seres humanos, consiste em relegar para segundo plano o interesse da pessoa singular em benefício de um maior bem comum com o qual todos lucram. p.23

Hanno Sauer | Moral - A invenção do bem e do mal | Edições Saída de Emergência | 2023