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outubro 22, 2018

"O silêncio torna-se sôfrego.
A fome dos silêncios cospe. Cospe-nos na cara.

Somos todos o sinal de uma antiga pobreza:
dedada de óleo, a impressão digital da fuligem:
os meus dedos são o que resta da ruína das fábricas"  

(...)
"Nunca são íntimos, os nossos dois corpos. A nudez afasta uma palavra da outra. Dois corpos nus tornam as palavras uma pele sombria. Estou perto de ti, toco-te, encerrado, preso, nesta proximidade. Um gesto. Um gesto é o cansaço de quem não sabe desistir. Estamos velhos: a única intimidade que os corpos criam é a morte: esperamos como bichos resignados. Adormeces. Levanto-me e escrevo. Porque o medo renasce de um quarto de hotel como de uma repetição. Com o cancro da sua pequena diferença. Tão breves, estes sulcos nada guardam. Porém uma cicatriz guarda o corpo inteiro. 
Rui Nunes (2014) | Nocturno Europeu | Relógio D'Água

outubro 03, 2017

"Umas vezes as palavras partem-se,
outras, inteiras rejubilam,
onde estão os cães que ladram em qualquer intimidade?
em que praia desembarcará o medo rastejante?
Em que toca o cimento engolirá algumas décadas
até não apodrecer?
O futuro onde estamos tem a iníqua alegria dos sacanas.

*

A palavra, hoje, mutila.
A palavra, hoje, mutila."

Rui Nunes (2014) | Nocturno Europeu | Relógio D'Água

dezembro 31, 2016


"cada recomeço é um nó. Natacha envelheceu, Pedro envelheceu. É o fim do livro. Prolongá-lo até à morte de Pedro e Natacha, até ao casamento dos seus filhos, depois escrever uma nova guerra. E de súbito a cabeça de Tolstoi, desamparada, bate na folha de papel, e o aparo da caneta espirra, ou o tinteiro vira-se e rios de azul enraízam o desamparo dessa cabeça, encobrem letras, palavras, matam-nas, partem-nas. E a história acaba.
Acaba?

não sei acabar: sei prolongar o massacre.
O meu.
Repito. Repito?
porque qualquer repetição inicia
um pequeno e fascinante desvio."

Rui Nunes (2014)Nocturno Europeu | Relógio D'Água

março 03, 2016


"é um homem anónimo: morte encerrada na morte. O seu nome morreu quando morreram os que o chamavam. E o tempo serviu-lhe para arrancar todas as raízes. Liberta, a morte repetiu-se."

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

agosto 17, 2015

©Gérard Castello-Lopes Untitled, Lisboa, Portugal, Undated
"Às vezes, não és mais do que um suporte para o meu rancor.
Outras vezes, quero construir contigo toda a memória, só me lembrar de ti, seres tudo o que há para lembrar."

Rui Nunes [1995]
Que sinos dobram por aqueles que morrem como gado. Relógio D'Água, 1995

julho 23, 2015

Rui Nunes- Mensageiro Diferido - Arquipélago 
"A nossa dor começa sempre por ser a nossa. Mas há um momento em que descobrimos que nem donos da nossa dor somos. E é isso que inicia um percurso político. É o momento em que descobrimos que essa dor é uma dor de muita gente, em que ultrapassamos esse sentimento de que somos únicos na nossa dor. E de certo modo é isso que torna uma escrita numa escrita madura. Esse momento em que descobrimos, vagamente atónitos, que não somos proprietários de nada. E nem daquilo que achávamos que era mais nosso, porque muito mais nosso do que a felicidade é a dor. Porque a dor dói e a felicidade não se sabe muito bem o que faz. E esse momento em que somos desapossuídos da nossa dor, essa dor não é só tua, essa dor é de imensa gente,  nós descobrimos o outro. E o outro, o outro enquanto o outro na dimensão política, é esse que descobrimos. (...) É nesse momento em que a dor se torna comum (...) em que deixa de ser minha é o momento fulcral de qualquer escrita. É o momento político da escrita." 
Rui Nunes.

julho 02, 2015

"Ele não sabe, mas há tantos mundos como distâncias a que se está do chão, e hoje as mulheres louras não o olham, ou melhor, não o vêem, e os que o vêem não o olham, porque há um conhecimento que vem da proximidade da indiferença. Ele não sabe, mas o seu mundo é o dos que, vendo-o, não o olham, e sabem, e este facto tornou-lhe estranha toda a sua vida, foi ao longo dela e roubou-lha e a sua vida pertence agora a outro, e há nela o vazio de uma casa assaltada."

"nunca foi crente, mas sempre fingiu acreditar para sobreviver. E fingiu tão bem que acabou a acreditar. A crença porém é uma questão de palavras, do seu excesso ou da sua falta. E ele agora não fala. Limita-se a olhar. E a perder-se no labirinto de luz, no resíduo periférico da paisagem, com a sua nitidez inatingível. No centro, uma mancha cresce e empurra o mundo: de início os objectos curvavam-se, como num espelho convexo, mas depois começaram a diluir-se, até se apagarem. E a luz expandiu-se, tornou-se o seu medo. De se perder nela. De à sua volta tudo ficar turvo. Esta luz podia ter um nome consolador. Mas não tem, são simplesmente os olhos a morrer. dantes, quanto mais falava, mais claros ficavam os objectos. E, quando definitivamente se calou, o mundo tinha uma nitidez insuportável. Depois, os seus olhos adoeceram. A luz que os tornava nítidos explodiu. Uma lenta explosão desintegrou formas, limites, cores e distâncias. E ele aprendeu a desviar os olhos, para ver, tentar captar uma nitidez primitiva. Às vezes perguntam-lhe por que não me olhas?
E ele responde: para te ver

é um homem anónimo: morte encerrada na morte. O seu nome morreu quando morreram os que o chamavam. E o tempo serviu-lhe para arrancar todas as raízes. Liberta, a morte repetiu-se.

De manhã, os caminhos são nítidos. Depois, a luz apaga-os.
O homem dobrado sobre a terra soletra o pó. E a mesma palavra endurece-lhe os lábios. Até nada dizer. O silêncio responde ao silêncio. Entre eles o gesto apaga-se, desenhando-se.

Com a tua sombra, abre na luz a porta"


Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

junho 24, 2015

vésperas palestinas

nestes lugares que rodeiam a cidade,
os homens são desencontrados vultos
que transportam um país estranho:
foram deixando os mortos para trás,
despojos de uma guerra que o luxo rasurou:
nas praias inclementes sobrevoam-nos gaivotas
cuja fome é a sombra de um dia sem poeira;
nestes lugares cercados pela cidade,
abriga-se um deus que desconhece
o longo entardecer da eternidade

aqui, todos os dias são ínfimas viagens
e o teu nome vem nos outros nomes
como um emigrante clandestino

Rui Nunes
Ofício de Vésperas, Relógio D'Água, 2007

junho 22, 2015

"uma palavra vem atrás de outra, que vem atrás de outra. E levam-no para longe. Cada uma delas é o troço de um caminho que ele percorre, com um sentido diferente da anterior. Por isso há tantos desvios. Cada palavra indica um caminho que a palavra seguinte muda. Falas de um modo tão estranho: dizem-lhe. Ele sabe isso, mas nada pode fazer. Porque, embora pareça ser ele quem fala, na verdade não é: as palavras usam os seus lábios, como hóspedes que não se demoram nele, ansiosos. Nunca se perdem no mundo: perdem-se umas nas outras.(...) Dão-lhe espaço. Habituam-no a um espaço vazio. Cada vez mais vazio. Que está a crescer, até se tornar do tamanho do seu corpo."

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009
"a fome torna equivalentes todos os bichos do mundo. Também os homens"

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

junho 08, 2015

"Está onde sempre esteve, para onde sempre veio, quando as palavras a cansavam, está longe de qualquer chegada e de qualquer partida: o mundo é este quintal. A cegueira do calor. Não há lugar para Deus. A mulher sabe há muito que o abandono tem os nomes todos. Chama-se pedra, urze, casa, árvore, vide, rua, água, praça, chuva. Mas não deus. Boas tardes: diz-lhe o homem. E uma mosca pousa-lhe na saia. Tudo vem a esse abandono cheio de coisas. E por isso não pode dizer: meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? As suas palavras são pequenas, vão de um objecto a outro e às vezes perdem-se entre eles. O abandono são também essas palavras desorientadas. Deus é um nome que ela não sabe procurar. Deram-lho à nascença e carrega-o como um lugar vazio. Ele é qualquer lugar vazio. Tantas vezes olhou Andreas e viu nele esse lugar vazio. Não que Andreas fosse Deus, mas a sua desolação era a mesma. Vê Andreas e há uma grande estranheza no nome de Deus. Vê o carreiro de formigas e há uma grande estranheza no nome de Deus. Vê a filha e há uma grande estranheza o nome de Deus. Vê-se e há uma grande estranheza o nome de Deus. Quando Andreas a fodia, havia uma grande estranheza no nome de Deus. "

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

maio 26, 2015

©Francesca Woodman
PLAY Nick Cave & Bad Seeds Stranger than Kindness
"Era um homem que banalizava o mundo para poder ser nele acolhido sem drama, que transformava o horror e a maldade em lugares-comuns, para não sentir remorsos. E, apesar do meu ódio, também eu o amava, porque a indiferença que ele introduzia na sua vida e na dos outros me dava uma paz intensa, por isso estava prestes a segui-lo numa viagem, numa deserção, ou num crime. Assim me tornava a cúmplice perfeita, colada aos seus passos, fascinada pela sua voz. Perto dele, as palavras regressavam com uma fluência mentirosa, como se tivéssemos voltado da morte e tudo pudesse ser dito. Todos os gestos pudessem ser feitos"

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

maio 18, 2015

©Josef Koudelka. GREECE

PLAY Team Sleep Natalie Portman
"é preciso esquecer para andar, talvez assim se chegue, isto é, se consiga fixar o som aos sítios, não o deixar afastar-se, como a música do violoncelo que sai das janelas abertas da grande casa, e atravessa o jardim, só castanheiros nus e bancos molhados, para lhe chegar intacta aos ouvidos.
Está frio
e a melodia é um atalho para um nome que teima em esconder-se, quer dizê-lo, a música porém afasta-se, ou ele dela, ou um para um lado e a outra para outro, e o som dos passos cresce nesse hiato, também o do coração na cabeça"
Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, 2009, Relógio D'Água

abril 28, 2015

"Ele espera que reapareçam as árvores, o passeio molhado, os carros com o tejadilho cheio de folhas, o som do violoncelo, para recomeçar, ganhando a cada passo a força para o passo seguinte, dobrado para o chão, atirado para a frente, em passadas trôpegas e rápidas, que acabam numa breve hesitação. É preciso reconhecer um destino em cada passo, reconhecer que o destino de cada passo é o passo seguinte."

Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009

abril 26, 2015

©Stuart Franklin. INDIA. Near Cochin, Kerala. Preparing coconut oil. 1998

PLAY Madrugada Strange Colour Blue

"tenho sempre os dedos frios, enrugados, como se me tivesse fugido o sangue e eu fosse um saco quase vazio, nem sei se é o polegar que sente o indicador, se o indicador que sente o polegar, tudo se transtorna, até as palavras, digo-as e elas estranham a minha boca, talvez seja melhor escrevê-las. Letra a letra, silenciá-las, para que assim desapareçam, Mãe, que está a tentar escrever, no tampo da mesa? que nome é esse?
um nome é uma dor que nos escolhe. Ultimamente, porém é sempre a mesma dor, o mesmo nome, perseguido pela luz, devorado pela luz, 
Não se fixa esta cegueira,
não se fixa a tua cabeça, mãe."

"a luz do rio atravessou as vidraças e cintila na parede, o gato saltou pela janela e aconchegou-se no colo da minha mãe que lhe começa a fazer festas, a mão desenha o gato com o vagar da ternura, e os lábios movem-se: bichaninho meu, bichaninho querido, ou: mitzi mitzi: murmuram, rezam: diria a freira se aqui estivesse, mas eu sei que não rezam, nunca rezaram, embora no abandono todas as palavras se assemelhem a uma oração e se dirijam a mortos ou deuses"

Rui Nunes
Os olhos de Himmler, Relógio D'Água

fevereiro 15, 2015

PLAY Debussy Arabesque

com a palavra apago a tua face, ou afasto-a
palavra a palavra até ser estranho
o som deste resíduo

redescubro-te num lugar exposto ao desencontro
na luz retecida pelo vento

Rui Nunes, Ofício de Vésperas,  Relógio D'Água, 2007

dezembro 21, 2014

Rui Nunes


és só um homem esquecido pela terra,
os que te cercam não te reconhecem,
nada sabem das tuas mãos, dos teus olhos,
da coisa mais ínfima que seja tua.
Tu vês os que te cercam, mas eles
rodeiam-te da tua ausência
com a perseverança de sobreviventes

do mundo aos lábios: a separação
do olhar de Deus

Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio D'Água

maio 17, 2014

Rui Nunes

"vieste com sinais de antiga alegria. E vi que não tinhas sido mais do que um trajecto, o percurso onde te transformaras num estrangeiro. Mas o que amei em ti foi a possibilidade de todos os caminhos por onde poderias ter ido e onde sempre te reconheceria. Isso, antes de saber que o meu destino era a realização de uma morte antecipada
e depois? nós temos a consciência de que não somos génios, do assim assim que somos, aborrecemos algumas palavras e delas nos rimos, e dos directores gerais da cultura, seus mansos servidores, e de outros sábios que mijam e cagam como nós, de calças abaixo, sentados nas sanitas, sem espanto de Alexandre, aliás sem nenhum espanto, monocórdicos e graves, que têm no futuro um caixão de primeira e um epitáfio ou um poema em memória de." (pp. 46-47)

"não te podia odiar, e era esse o castigo, porque te tornaras indiferente como lugar nenhum, e o que havia em ti era anterior aos meus olhos, estavas como se ninguém nunca te tivesse olhado, na desatenção dos que não esperam nem concebem quem os espere, perguntava-me o que me tinha levado a construir-te com materiais tão precários e a resposta era a outra pobreza que era a minha" (p.49)

Rui Nunes, "Os Deuses da Antevéspera", 1990

Rui Nunes


"A boca é um útero estéril, receptáculo onde o futuro se extingue. Vêem os dedos a seda mais quente e os olhos a implosão da curva, arco que torna inúteis as palavras, as desfaz no pranto da saliva, matéria anónima onde nos respiram os outros. E ascendo pelo breve presente furioso, os músculos contraídos, e na tua boca deponho quanto de teu. O duplo aquário repleto de água original.

Dormir, é rápido. Mas a vigília, a grande construtora de idos


deste-me um murro na cara. E assim descobri os meus limites. Com precaução toquei a boca dolorida: era a minha, inchada, palpitante. Sentia-a pela primeira vez. Pediste-me: Bate-me. Respondi-te: não. E deixei-te perdido na recusa. Mas tu voltaste a agredir-me. E a pouco e pouco eu subia à minha integridade, à totalidade do meu ser. Percebia todos os sítios de mim e vivia essa plenitude com alegria

no entanto, depressa te apercebeste da minha felicidade e me obrigaste a atravessar o campo.

Se a meu lado me exigem a verdade, eu digo-a, mas o que digo é só a verdade exigida, aquela que é por ordem de quantos me fizeram a consciência e esperam hoje que eu cumpra como me estava reservado." (p.10)


"Recomeço. A vida é um instante dilatado à medida da vida" (p.13)


Rui Nunes, "Os deuses da antevéspera", 1990