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janeiro 25, 2015

©Archip Kuinji (1842-1910) Mar e Luar
PLAY Stephan Micus Adela

O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling erravam pelas estradas do reino de Han.
Avançavam devagar, pois Wang-Fô parava de noite para contemplar os astros, de dia, para olhar as libélulas. Iam pouco carregados, pois Wang-Fô amava a imagem das coisas e não as próprias coisas, e nenhum objecto do mundo lhe parecia digno de ser adquirido, excepto pincéis, boiões de laca e de tintas-da-china, rolos de seda e papel de arroz. Eram pobres, pois Wang-Fô trocava as suas pinturas por um caldo de milho-miúdo e desprezava as moedas de prata. O seu discípulo Ling, vergado ao peso de um saco cheio de esboços, curvava respeitosamente as costas como se carregasse a abóbada celeste, pois aquele saco, aos olhos de Ling, ia cheio de montanhas sob a neve, de rios pela Primavera e do rosto da lua no Verão.
(...)
Certa noite, numa taberna, teve Wang-Fô por companheiro de mesa. O velho bebera para ficar em condições de pintar mais capazmente um bêbado; a cabeça pendia-lhe de lado, como se procurasse medir a distância que separava a sua mão da chávena. A aguardente de arroz soltava a língua daquele artesão taciturno, e nessa noite Wang falava como se o silêncio fosse um muro e as palavras cores destinadas a cobri-lo. Graças a ele, Ling conheceu a beleza das caras dos bebedores esbatidas pelo vapor das bebidas quentes, o moreno esplendor das carnes desigualmente acariciadas pela língua das chamas e o delicado rosicler das nódoas de vinho que salpicavam as toalhas como pétalas murchas. Uma rabanada de vento rompeu a janela; a tempestade entrou pela sala. Wang-Fô esgueirou-se para dar a contemplar a Ling o lívido zebrado do relâmpago, e Ling, maravilhado, perdeu o medo à trovoada.
(...)
Um dia, pelo sol poente, alcançaram os arrabaldes da cidade imperial, e Ling procurou uma estalagem onde Wang-Fô passasse a noite. O velho embrulhou-se nuns trapos e Ling deitou-se colado a ele para o aquecer, pois a Primavera mal rompera e o chão de terra batida estava ainda gelado. Pela madrugada, ecoaram pesados passos nos corredores da pousada; ouviram-se os aterrados sussurros do hospedeiro e ordens vociferadas numa língua bárbara. Ling estremeceu, lembrando-se que na véspera roubara um pastel de arroz para a refeição do mestre. Sem duvidar de que vinham para o prender, perguntou-se quem ajudaria Wang-Fô a atravessar a vau o próximo rio.
Entraram soldados com lanternas. Filtrada pelo papel sarapintado, a chama lançava-lhes clarões vermelhos ou azuis nos capacetes de couro. Vibrava-lhes ao ombro a corda de um arco e os mais ferozes atiravam súbitos rugidos descabidos. Assentaram pesadamente a mão na nuca de Wang-Fô, que não pôde deixar de reparar que as mangas das suas vestes não condiziam com a cor do manto.
Amparado pelo seu discípulo, Wang-Fô acompanhou os soldados tropeçando por caminhos acidentados. Aos magotes, o populacho troçava daqueles dois criminosos que levavam certamente a decapitar. A todas as perguntas de Wang, os soldados respondiam com um esgar selvagem. As suas mãos agrilhoadas sofriam, e Ling, desesperado, olhava o mestre, sorrindo, o que, para ele, era uma maneira mais terna de chorar.
(...)
Era uma sala desprovida de paredes, sustentada por sólidas colunas de pedra azul. Para além dos fustes de mármore desabrochava um jardim, e cada flor contida no arvoredo pertencia a alguma espécie rara trazida de além-mar. Mas nenhuma delas tinha perfume, não fosse a doçura dos aromas alterar a meditação do Dragão Celeste. Por respeito ao silêncio em que mergulhavam os seus pensamentos, nenhuma ave fora admitida no interior do recinto e até as abelhas haviam sido escorraçadas. Um muro altíssimo separava o jardim do resto do mundo, para que o vento, que sopra sobre os cães mortos e os cadáveres dos campos de batalha, se não permitisse aflorar a manga do Imperador.
(...)
– Dragão Celeste – disse Wang-Fô prosternado –, sou velho, sou pobre, sou fraco. Tu és como o Verão; eu sou como o Inverno. Tu tens Dez Mil Vidas; eu tenho uma só, prestes a acabar. Que te fiz eu? Ataram-me as mãos, que jamais te prejudicaram.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – disse o Imperador.
A sua voz era tão melodiosa que dava vontade de chorar. Ergueu a mão direita, que os reflexos do chão de jade faziam mostrar-se glauca como planta submarina, e Wang-Fô, maravilhado pelo comprimento daqueles dedos esguios, procurou nas suas recordações se acaso não fizera do Imperador ou dos seus ascendentes algum retrato medíocre que merecesse a morte. Mas era pouco provável, porquanto, até então, Wang-Fô pouco frequentara a corte dos imperadores, preferindo as cabanas dos camponeses ou, nas cidades, os bairros das cortesãs e as tabernas junto aos cais onde brigam os carrejões.
– Perguntas-me que foi que me fizeste, velho Wang-Fô? – tornou o Imperador, inclinando o pescoço delicado para o velho que o escutava. – Vou-to dizer. Mas como o veneno dos outros apenas pode penetrar em nós pelas nossas nove aberturas, para te conduzir à presença dos teus erros tenho de passear-te pelos corredores da minha memória e contar-te toda a minha vida. Meu pai reunira uma colecção das tuas pinturas no aposento mais secreto do palácio, pois entendia que as personagens dos quadros devem ser subtraídas à vista dos profanos, na presença dos quais não podem baixar os olhos. Foi nestas salas que fui criado, velho Wang-Fô, pois haviam organizado a solidão à minha volta para me permitirem crescer nela. Para evitar à minha candura o contágio das almas humanas, haviam afastado de mim a agitada torrente dos meus futuros súbditos, e não era permitido a ninguém passar à soleira da minha porta, não fosse a sombra desse homem ou dessa mulher estender-se até mim. Os poucos velhos servos que me haviam destinado mostravam-se o menos possível; as horas giravam em círculo; as cores das tuas pinturas acendiam-se com a alvorada e empalideciam ao crepúsculo. De noite, quando não conseguia dormir, olhava-as e, durante cerca de dez anos, olhei-as todas as noites. De dia, sentado num tapete cujo desenho conhecia de cor, repousando as minhas mãos vazias nos meus joelhos de seda amarela, sonhava com as alegrias que o futuro me traria. Imaginava o mundo, com o país de Han ao meio, semelhante à cava e monótona planície da mão sulcada pelas linhas fatais dos Cinco Rios. A toda a volta, o mar onde nascem os monstros e, mais longe ainda, as montanhas que sustentam o céu. E para me ajudar a imaginar todas estas coisas, servia-me das tuas pinturas. Levaste-me a crer que o mar era semelhante à imensa toalha de água desdobrada nas tuas telas, tão azul que pedra que nele caísse só em safira se podia tornar, que as mulheres se abriam e fechavam como flores, iguais às criaturas que avançam, levadas pelo vento, nas áleas dos teus jardins, e que os jovens guerreiros de corpo esguio postados nas fortalezas das fronteiras eram flechas capazes de trespassar corações. Aos dezasseis anos vi abrirem-se as portas que me separavam do mundo: subi ao terraço do palácio para olhar as nuvens, mas eram menos belas do que as dos teus crepúsculos. Mandei vir a minha liteira: sacudido por estradas de cuja lama e de cujas pedras não suspeitava, percorri as províncias do Império sem encontrar os teus jardins cheios de mulheres como vaga-lumes, dessas tuas mulheres cujo corpo é em si mesmo um jardim. Os seixos das praias aborreceram-me dos oceanos; o sangue dos supliciados é menos vermelho que a romã figurada nas tuas telas; a escória das aldeias impede-me de ver a beleza dos arrozais; a carne das mulheres vivas repugna-me como a carne morta que pende dos ganchos dos açougueiros e o riso espesso dos meus soldados dá-me volta ao coração. Mentiste-me, Wang-Fô, velho impostor: o mundo mais não é do que um amontoado de manchas confusas, lançadas no vazio por um pintor insensato, que as nossas lágrimas apagam sem cessar. O reino de Han não é o mais belo dos reinos, e eu não sou o Imperador. O único império sobre o qual valha a pena reinar é aquele em que tu penetras, velho Wang, pelo caminho das Mil Curvas e das Dez Mil Cores. Só tu reinas em paz sobre montanhas cobertas de uma neve que jamais fundirá e sobre campos de narcisos que jamais hão-de morrer. Por isso mesmo, Wang-Fô, procurei que suplício te houvera de reservar, a ti cujos sortilégios me desgostaram daquilo que possuía e me deram o desejo daquilo que não possuirei nunca. E para te encerrar na única masmorra donde não pudesses sair, decidi que haviam de queimar-te os olhos, porque os teus olhos, Wang-Fô, são as duas portas mágicas que te abrem o teu reino. E porque as tuas mãos são as duas estradas de dez caminhos que te conduzem ao coração do teu império, decidi que haviam de cortar-te as mãos. Compreendeste, velho Wang-Fô?
(...)
Ao ouvir semelhante sentença, o discípulo Ling arrancou da cintura uma faca embotada e precipitou-se sobre o Imperador. Dois guardas o detiveram. O Filho do Céu sorriu e acrescentou num suspiro:
– E também te odeio, velho Wang-Fô, porque soubeste fazer-te amar. Matem esse cão.
Ling deu um salto em frente, não fosse o seu sangue manchar as vestes do mestre. Um dos soldados ergueu o sabre e a cabeça de Ling desprendeu-se da nuca como flor ceifada. Os servos retiraram os despojos, e Wang-Fô, desesperado, admirou a bela mancha escarlate que o sangue do discípulo desenhava no pavimento de pedra verde.

(...)
Wang começou por tingir de rosa a ponta da asa de uma nuvem pousada numa montanha. Depois acrescentou à superfície do mar pequenas rugas que tornavam ainda mais profundo o sentimento da sua serenidade. O pavimento de jade tornava-se singularmente húmido, mas Wang-Fô, absorto na sua pintura, não se apercebia de que trabalhava sentado na água.
(...)
Wang-Fô disse-lhe baixinho, continuando a pintar: 
– Julgava-te morto. 
– Vivendo vós – disse Ling respeitosamente –, como poderia eu morrer? 
E ajudou o mestre a subir para o barco. O tecto de jade reflectia-se na água, de tal modo que Ling parecia navegar no interior de uma gruta. As tranças dos corte- sãos submersos ondulavam à superfície como serpentes, e a pálida cabeça do Imperador flutuava como um lótus.
- Olha, meu discípulo – disse Wang-Fô com melancolia. – Estes desgraçados vão perecer, se acaso não pereceram já. Não supunha que houvesse água bastante no mar para afogar um Imperador. Que faremos nós?
– Nada temas, Mestre – murmurou o discípulo. – Breve se encontrarão em seco e nem sequer se recordarão que alguma vez se lhes molhou a manga. Só o Imperador há-de guardar no coração um resto de marinha amargura. Esta gente não foi feita para se perder no interior de uma pintura.
E acrescentou:
- É belo o mar, e o vento é bom, as aves marinhas fazem ninhos. Partamos, Mestre, rumo ao país para além das vagas.
-Partamos- disse o velho pintor.
(...)
e  o pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling desapareceram para sempre naquele mar de jade azul que Wang-Fô ali mesmo inventara."

Marguerite Yourcenar  Contos Orientais (A salvação de Wang-Fô), Dom Quixote: 2002
 Archip Kuinji (1842-1910) Fishing_at_the_Back_Sea_1900