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julho 04, 2024

  

©Werner Bischof | Zurich. Switzerland | 1942 | Zebra Woman

ELEGIA AZUL
Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.
Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.
Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero seu teu intermitentemente em cada lua nossa.
Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes

Rui Costa (1972 - 2012) Mike Tyson para principiantes: antologia poética | 2022 | Assírio & Alvim

julho 03, 2024

©Hans_Baumgartner | Limmatquai in Zürich | 1938

"E lá fomos audazes por passeios tardios 
Vadiando o asfalto, cruzando outras pontes de mares que são rios"
Fausto Bordalo Dias
HUMANO
Com o homem começa o invisível.
O que se diz é o que se esconde, os olhos
giram para bem longe da sua fome.
O homem enche a sua fome de poemas,
os seus poemas de sonhos de amor,
os seus sonhos de amor de coisas impossíveis,
como a eternidade ou o lugar perfeito
onde nos deitaremos a ouvir o pensamento
dos pássaros, a água que corre aflita
com medo de ser pouca no chão tanto,
com a loucura do mundo a crescer no 
nosso sexo, no nosso pensamento,
com o mundo a crescer vibrante a cada instante,
por dentro de nós, em nós, por fora de nós,
sem parar, sem memória, sempre,
sem fim, sem infinito, para lá das coisas que nos vencem,
para lá do sonho, nesse lugar além de tudo quanto
pode ser dito, de tudo quanto foi dito, além da história
do que somos, da vida que vivemos, todos, incluindo os mortos,
os que ainda não nasceram, os que se vendem, por dinheiro
ou excesso de tristeza, os que acreditam na vida, na beleza, 
na utilidade prática da arte, na invencibilidade do amor,
na irmandade dos homens que constroem um mundo melhor,
homens e mulheres que estão aqui, ou que porventura
chegarão amanhã, quando nós e eles formos outros,
maiores que o dia que passou, que a noite que nos guarda,
quando o invisível for mais perto do braço que nos toca,
dos olhos onde revemos a história do mundo,
deste momentos onde parimos a luz

Rui Costa (1972 - 2012) Mike Tyson para principiantes: antologia poética | 2022 | Assírio & Alvim

julho 02, 2024

©Edouard Adelot | 1906 | Léffort

PLAY Fausto Bordalo Dias | A memória dos dias

"Deixo-te uma palavrinha 
Para te lembrares de mim"
Fausto Bordalo Dias
O PÃO
Há pessoas que amam
com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
e quando as perdemos estão sempre
ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
a lua encontra o pão caiado que comemos
enquanto o riso das promessas destila
na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
e pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
que não precisa de voar.

Rui Costa (1972 - 2012) | Mike Tyson para principiantes: antologia poética | 2022 | Assírio & Alvim