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junho 30, 2024

 

©Cornell Capa | 1960 | California, USA,  
Senator John F. Kennedy reaches his hands into a crowd while campaigning for the presidency

PLAY Grieg | Lyric Pieces Book V, Op. 54, No.4 Notturno 

SAQUE DE GUERRA

Dantes sabíamos o mundo de trás para a frente:
-era tão pequeno que cabia num aperto de mão,
tão simples que se deixava descrever com um sorriso,
tão comum como o eco de antigas verdades numa prece.

A História não nos saudou com uma fanfarra triunfante:
- em vez disso, atirou-nos areia para os olhos.
Diante de nós estavam caminhos distantes e sem saída,
poços envenenados e pão amargo.

O nosso saque de guerra foi conhecer o mundo:
- é tão grande que cabe num aperto de mão,
tão difícil que se deixa descrever num sorriso,
tão estranho como o eco das antigas verdades numa prece.

Wislawa Szymborska | Um inconcebível acaso | Edições do Saguão | 2023

junho 29, 2024

©Gustave Marissiaux | 1905 (oder früher) | Interior

PLAY Meredith Monk | Cow Song 

NATUREZA MORTA COM UM BALÃO

Em vez do regresso das recordações
na hora da minha morte
peço o regresso 
das coisas perdidas.

Por portas e janelas: sombrinhas,
malas, luvas, um casaco -
para que eu possa dizer:
Para que preciso eu de tudo isto?

Alfinetes, este pente e aquele,
uma rosa de papel, um cordel, uma faca,
para que eu possa dizer:
Nada disto me faz falta.

Chave, onde quer que estejas,
trata de chegar a horas
para que eu possa dizer:
Ferrugem, minha cara ferrugem.

Caia uma chuva de certificados,
licenças e questionários,
para que eu possa dizer:
O sol está a pôr-se.

Relógio, sai desse rio
e deixa-me pegar-te na mão,
para que eu possa dizer:
Tu finges ser a hora.

Há-de aparecer também um balão
arrebatado pelo vento
para que eu possa dizer:
Aqui não há crianças.

Voa pela janela aberta!
Voa pelo mundo afora!
Possa alguém exclamar: Oh!
Para que eu possa chorar.

Wislawa Szymborska | Um inconcebível acaso | Edições do Saguão | 2023

junho 21, 2024

©Werner Bischof | 1947 | After the War A figure stands in silhouette at a circus | Hungary 

PLAY Karol Szymanowski | 9 Preludes, Op. 1: N.º 1 in B minor | Krystian Zimmerman

O ESPELHO
Sim, lembro-me dessa parede
da nossa cidade em escombros.
Projectava-se quase até ao sexto andar.
No quarto andar tinha um espelho,
um espelho inconcebível,
inteiro e bem preso à parede.

Já não reflectia o rosto de ninguém,
nem as mãos que compunham o cabelo,
nem a porta que ficava em frente,
nada que se pudesse chamar 
lugar.

Era como de estivesse de férias -
mirava-se nele o céu vívido,
nuvens em bulício no ar bravio,
a poeira dos escombros lavada por chuvas brilhantes,
pássaros em vôo, estrelas, o nascer-do-sol.

E, como todo o objecto bem fabricado,
funcionava na perfeição,
com uma profissional falta de espanto.

Wislawa Szymborska | Um inconcebível acaso | Edições do Saguão | 2023

abril 04, 2015

Wisława Szymborska

Wisława Szymborska (Polónia, 1923-2012)  
"Há indivíduos que servem para a reprodução e para serem fotografados. Como certas montanhas para certos turistas, e certas espécies animais em certos cios musculados.
   Os canos da cidade são falsificados como as notas, oferecem-te água e roubam os restantes elementos. Porque não há torneiras de terra, ou ar, nem, claro, de fogo. E tal facto mostra como a cozinha do cidadão se encontra afastada da Natureza.
   Até à véspera nenhuma torneira deitara sangue."

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca, Campo das Letras, 2006

março 23, 2015


©raquelsav. Muzeum Kinematografii. Lodz (Polónia) 20 Março 2015
(...)
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro fazer isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.

Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.

Extracto de POSSIBILIDADES de 

Wislawa Szymborska (Trad. Aleksandar Jovanovic e Henry Siewierski)
Rosa do Mundo- 2001 poemas para o futuro. 2001. Assírio&Alvim

março 21, 2015

Alguns gostam de poesia
Alguns -
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.

Gostam -
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.

De poesia -
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.
Wislawa Szymborska