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©Gustave Marissiaux | 1905 (oder früher) | Interior |
NATUREZA MORTA COM UM BALÃO
Em vez do regresso das recordações
na hora da minha morte
peço o regresso
das coisas perdidas.
Por portas e janelas: sombrinhas,
malas, luvas, um casaco -
para que eu possa dizer:
Para que preciso eu de tudo isto?
Alfinetes, este pente e aquele,
uma rosa de papel, um cordel, uma faca,
para que eu possa dizer:
Nada disto me faz falta.
Chave, onde quer que estejas,
trata de chegar a horas
para que eu possa dizer:
Ferrugem, minha cara ferrugem.
Caia uma chuva de certificados,
licenças e questionários,
para que eu possa dizer:
O sol está a pôr-se.
Relógio, sai desse rio
e deixa-me pegar-te na mão,
para que eu possa dizer:
Tu finges ser a hora.
Há-de aparecer também um balão
arrebatado pelo vento
para que eu possa dizer:
Aqui não há crianças.
Voa pela janela aberta!
Voa pelo mundo afora!
Possa alguém exclamar: Oh!
Para que eu possa chorar.
Wislawa Szymborska | Um inconcebível acaso | Edições do Saguão | 2023