Mostrar mensagens com a etiqueta #Armando.Silva.Carvalho. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta #Armando.Silva.Carvalho. Mostrar todas as mensagens

setembro 09, 2016

Cesariana

No fim da tarde eu observo as abelhas
na sua telepatia intermitente.
Um cuco canta. As rãs, ao simples movimento
dos meus pés, saltam para dentro da água.
E a casa em frente alberga outros fantasmas
que se recusam ao meu imaginário.
Pergunto a esta paisagem pela minha paisagem.
Nenhuma voz interna aqui dilata o espaço
e vem chegando o vento.
Ouço-o cantar na folhagem em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval em flor
das laranjeiras.
O homem está presente: a escada junto ao muro,
a terra bem tratada de um faval ao longe.
Não posso aceitar esta solidão
que o céu, agora em concha, fechou
dentro do dia contra a natureza.
Esta casa repele a minha vida.
Com os olhos cheios de lágrimas,
aguardo que a memória apunhale a casa
e crie para mim outras moradas.

Armando Silva Carvalho | Sentimento dum Acidental | Contexto de Poesia | 1981

agosto 19, 2014

Armando Silva Carvalho

©Thomas Hoepker GERMANY. Hamburg. 1954. Old woman in a snowstorm

Folhas traídas     

           1
Eis o Teatro da Casa.
Choro diante da topografia dos sentidos,
o coração da Mãe cresce na cabeça.
As cenas mais cruéis quase flutuam,
não tenho posição,
não posso preservar mais tempo
as águas do instinto.
Destroem-me o umbigo as vozes invocadas 
em torno da rosácea, matriz,
metamorfose.
Este palco, este corpo.
Se corro para o mundo afogam-me as palavras.
Ajoelho a alma até sentir na boca
os teus lábios em sangue,
esse surdo rumor cuja fome
não cabe nos recitativos.
Ó tu, mãe teatral, simulacro do berço
em que pariste este inferno de folhas já traídas,
minha coroa de glória, mãos que mexem no sexo,
em que parte da casa habitas estas noites?
Cada sentido meu- disseste- será
um dos teus filhos.
Choram na minha boca as mínimas crianças 
que puseste no mundo.
Mãe infeliz que caminhas nas lágrimas
e vestes devagar o medo e o sepulcro.
Ao olhar o meu corpo crescem-me os teus seios,
os meus ouvidos são o som da tua voz
e a minha língua treme nos teus dentes cerrados.
Posso mudar de sexo em cada instante
porque gritas sem dó e sem idade
dentro dos meus sonhos.
Hoje posso louvar-te, amar-te
ou devorar-te:
a memória é um espelho 
que a morte arrasta atrás de si
pela garganta.

    2
Pouco sorrias. Rias.
Vejo-te sentada no alto dos teus dias
quando as manhãs
não eram mais do que um sítio inquietante
em que a medo pousavam
os lábios de uma vida ao abandono.
Como és da cor da terra
não sei que nuvem baça
te cobre agora a boca e te dilata
os membros
-desfeitos eles também na longa 
caminhada.
Nenhuma ave louca compôs os teus vestidos
ou trouxe atrás de si
essa água quebrada que o teu olhar
recolhe.
Dizer que agora és nada
é já negar-me a fala
que me abre a garganta em sulcos
de silêncio.
Não posso acreditar que estás
somente em ondas de memória
como um feto.
Quando coloco as tuas mãos na minha testa
os teus braços descaem 
para o seio da terra
- não há no universo lugar para os teu pés,
e o teu cabelo
nem as florestas chegam a petrificá-lo.
Beijo o teu rosto e sabe-me a palavras.
Talvez nalguma lágrima
pudesse descobrir o gosto
do teu seio.
   
 3
Hoje - vejo-te de costas,
entre bichos caseiros, peças de riscado.
És grande como o castanheiro
e o meu corpo devora a tua sombra.
És feita devagar pelos meus sentidos.
Não há crime que baste aos nossos sexos.
Posso gritar tão longe no teu ventre
que a terra para mim será pequena.
Poderosa força amedrontada
que me pões de rastos.
De joelhos te peço: vem calar-me a boca.
Não quero este caminho de palavras
para passear contigo entre a memória.
És mais solene - quando me abandonas.
És mais altiva - como nunca foste.
Todo o amor que faço é para ti
a mais ampla das grutas,
um rio de sangue e leite, a morte
apetecida desses seres diários
que tu espantas com a mão
- ruidosa rainha.
Surges na noite orientando o esperma,
não tens eira nem beira,
tu, ó derradeira,
agora como no princípio.
E o meu grito tropeça contra o teu silêncio.
Pergunto aos deuses por que estás comigo
e me empurras a língua para o seio
da treva.
Todo o amor que digo se enrosca
aos teus cabelos
e desço, frase a frase,
lá onde arrefecemos entre o fogo e lágrimas.
Agora e para sempre vejo-te de costas
e deixas-me mais velho.
Entre bichos caseiros, peças de riscado,
não te cansas e cortas 
o pão da minha infância.
Porque a memória é um espelho
que a morte arrasta atrás de si
até ao fim do mundo.

    4
Agora estás sozinha à mesa do cobalto.
E como adolescente obstinada
comungas muros brancos
na secura da cal
(sinistra nos deus olhos)
- ó imaculada.
Os punhos nos ouvidos não são a força
bastante para empurrar o som
até às nuvens, ó idolatrada.
Querias tanto à terra com os seus gatos,
criaturas do sol no teu regaço azul,
que nenhuma palavra te protege
da minha boca em fúria,
- amada e destruída até aos ossos.
Às vezes quando no silêncio acordo
a perguntar por ti e
habitas o meu corpo,
que mais posso fazer do que arranhar na noite
a tua carne fria, ó desamparada?
Na folhagem do sangue eu afogo
a cabeça,
percorro com a língua a rede dos pulmões,
o meu eco atravessa toda a natureza
- porque não respondes?
E lentamente o teu olhar flutua.
Trazes na mão o peso
dos meus dias e ouço-te dizer:
a terra não resiste ao fogo do meu ventre,
ao ar que me respiras,
às águas surdas em que me bebeste.


Armando Silva Carvallho
in Sentimento dum Acidental
1981