Acto Primeiro (Versão 2.1)
[dois corpos celestes em decúbito dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente prostrados; ecoa, ao longe, a música:
Popol Vuh | Aguirre PLAY]
π: [em voz gutural-lassa]
No princípio era o verbo*...
@: [com fastio]
Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.
π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
(No início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**
@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***
π: És incapaz, não és?
@: Perfeitamente!
π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!
@: Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O universo é um Grande Ovário...
[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]
...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!
π: Disseste alguma coisa?
@: Não, não, esquece.
π: Mas a propósito, foi o ovo.
@: A sério?
π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
Queres que te faça um esquema?
@: Agora não me apetece, eu depois vou ao Google.
Mas tu és um poço.
π: Tens razão, afundo-me com facilidade.
@: Devia levar-te mais a sério, não era?
π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.
@: Xiuuu...
π: O que foi?
@: [sussurrando:]
Cala-te, acho que não estamos sozinhos.
π: Como assim?
@: [tapando, a custo, cada boca com cada mão]
Xiuuu....
[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]
@: Esquece. Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.
π: Ou Deus, ou o Grande Ovário.
[π inspira profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma meada de lã em novelo, mas em slow-motion]
π: Como foi a tua entrada no novo ano?
@: A mesma rotina de sempre.
π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio, letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de foguetes?
@: Não. A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas primeiras urinas do ano.
π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.
@: Desde quando discutimos excedentes orgânicos?
π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.
@: Gosto mais de ti a cagar erudição.
π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?
@: O "H"?
π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.
[e fez-se silêncio... após 5 minutos de silêncio total:]
@: Estás a incomodar-me.
[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]
@: A razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?
π: É por isso que gosto de poesia.
@: Eu detesto poesia. A tua poesia.
π: Eu sei.
@: Recita-me um poema.
[π sobe novamente para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama profundamente]:
π:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.
Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.
Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.
Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.
@: Muito mau, mesmo!
π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.
@: Agora confundes o verbo querer com crer?
π: Não!
[π escorrega novamente e junta-se a @]
π: Porquê a arroba?
@: Foi o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.
π: Ninguém se chama assim.
@: Pois não, sou um mito da criação.
E o teu pi?
π: De urso, então?[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar] <--- vasleuqaR <---
___________________________________
*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1
** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006
*** PLAY Carlos Carrapiço - O poeta
[dois corpos celestes em decúbito dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente prostrados; ecoa, ao longe, a música:
Popol Vuh | Aguirre PLAY]
π: [em voz gutural-lassa]
No princípio era o verbo*...
@: [com fastio]
Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.
π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
(No início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**
@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***
π: És incapaz, não és?
@: Perfeitamente!
π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!
@: Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O universo é um Grande Ovário...
[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]
...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!
π: Disseste alguma coisa?
@: Não, não, esquece.
π: Mas a propósito, foi o ovo.
@: A sério?
π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
Queres que te faça um esquema?
@: Agora não me apetece, eu depois vou ao Google.
Mas tu és um poço.
π: Tens razão, afundo-me com facilidade.
@: Devia levar-te mais a sério, não era?
π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.
@: Xiuuu...
π: O que foi?
@: [sussurrando:]
Cala-te, acho que não estamos sozinhos.
π: Como assim?
@: [tapando, a custo, cada boca com cada mão]
Xiuuu....
[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]
@: Esquece. Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.
π: Ou Deus, ou o Grande Ovário.
[π inspira profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma meada de lã em novelo, mas em slow-motion]
π: Como foi a tua entrada no novo ano?
@: A mesma rotina de sempre.
π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio, letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de foguetes?
@: Não. A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas primeiras urinas do ano.
π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.
@: Desde quando discutimos excedentes orgânicos?
π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.
@: Gosto mais de ti a cagar erudição.
π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?
@: O "H"?
π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.
[e fez-se silêncio... após 5 minutos de silêncio total:]
@: Estás a incomodar-me.
[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]
@: A razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?
π: É por isso que gosto de poesia.
@: Eu detesto poesia. A tua poesia.
π: Eu sei.
@: Recita-me um poema.
[π sobe novamente para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama profundamente]:
π:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.
Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.
Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.
Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.
@: Muito mau, mesmo!
π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.
@: Agora confundes o verbo querer com crer?
π: Não!
[π escorrega novamente e junta-se a @]
π: Porquê a arroba?
@: Foi o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.
π: Ninguém se chama assim.
@: Pois não, sou um mito da criação.
E o teu pi?
π: De urso, então?[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar] <--- vasleuqaR <---
___________________________________
*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1
** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006
*** PLAY Carlos Carrapiço - O poeta