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janeiro 07, 2017

palimpsesto [2.1]

                                 Acto Primeiro (Versão 2.1)

[dois corpos celestes em decúbito dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente prostrados; ecoa, ao longe, a música:
                                                  Popol Vuh | Aguirre PLAY]

π: [em voz gutural-lassa] 
  No princípio era o verbo*...

@: [com fastio]
   Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.

π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
 (No início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**

@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***

π:  És incapaz, não és?

@: Perfeitamente!

π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!

@: Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O universo é um Grande Ovário...

[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]

    ...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!

π: Disseste alguma coisa?

@: Não, não, esquece.

π: Mas a propósito, foi o ovo.

@: A sério?

π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
    Queres que te faça um esquema?

@: Agora não me apetece, eu depois vou ao Google.
      Mas tu és um poço.

π: Tens razão, afundo-me com facilidade.

@: Devia levar-te mais a sério, não era?

π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.

@: Xiuuu...

π: O que foi?

@: [sussurrando:]
  Cala-te, acho que não estamos sozinhos.

π: Como assim?

@: [tapando, a custo, cada boca com cada mão]
   Xiuuu....

[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]

@: Esquece. Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.

π:  Ou Deus, ou o Grande Ovário.
    
 [π inspira profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma meada de lã em novelo, mas em slow-motion]

π: Como foi a tua entrada no novo ano?

@: A mesma rotina de sempre.

π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio, letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de foguetes?

@: Não. A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas primeiras urinas do ano.

π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.

@: Desde quando discutimos excedentes orgânicos?

π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.

@: Gosto mais de ti a cagar erudição.

π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?

@: O "H"?

π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.

[e fez-se silêncio...  após 5 minutos de silêncio total:]

@: Estás a incomodar-me.

[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]

@: A razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?

π: É por isso que gosto de poesia.

@: Eu detesto poesia. A tua poesia.

π: Eu sei.

@: Recita-me um poema.

[π sobe novamente para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama profundamente]:

π:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.

Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.

Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.

Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.


@: Muito mau, mesmo!

π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.

@: Agora confundes o verbo querer com crer?

π: Não!

[π escorrega novamente e junta-se a @]

π: Porquê a arroba?

@: Foi o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.

π: Ninguém se chama assim.

@: Pois não, sou um mito da criação.
   E o teu pi?

π: De urso, então?
[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar]                                                <--- vasleuqaR <---
___________________________________

*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1

** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006


***  PLAY Carlos Carrapiço - O poeta