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julho 04, 2017

©Gerard Castello-Lopes
A OUTRA CIDADE
Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz; 
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. NEsta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras, paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados, perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não ditas.

Giánnis Ritsos (1972) | Antologia | Fora do Texto | 1993

agosto 05, 2016

APESAR DE TUDO
Passou muito tempo. O que trouxemos connosco das nossas casas,
tudo se rompeu, se gastou, se sumiu.

O som do bater da porta no ardor-do-sol
a voz que dizia no corredor "como vens tarde",
o pente branco com que se penteava a mulher em frente ao espelho,
um cigarro que fumávamos à janela numa noite de-primavera
empurrando a cauda da Ursa Menor,
a sombra de duas mãos por sob a lâmpada, entre dois pratos de fruta, -

Tudo quanto trouxemos connosco dentro de nossas trouxas,
aquelas peúgas brancas que usávamos outrora de verão na praia,
e as ceroulas brancas e as camisolas desportivas que se diriam assentar-bem no corpo de Abril,
e ainda a tesourinha com que cortava outrora a nossa irmã mais-nova as unhas no peitoril-da-janela
e os reflexos das vidraças que tremiam sobre suas faces e suas mãos,
tudo isso se desfiou, se despedaçou, se gastou,
enferrujou também a tesourinha, quebraram--se-lhe as pontas,
é como a andorinha morta - ali no chão sobre a pedra -
ao lado da máquina de barbear e do sabão do mar -
não reparamos nela - cortamos as unhas dos pés, cortamos os calos
 é como uma chave ferrugenta - não serve - as fechaduras quebraram-se.

Tudo quanto trouxemos connosco em nossas trouxas e em nossas malas
tudo se rompeu, se gastou. Não resta nada.

Apesar de tudo, de vez em quando, à hora em que anoitece
e a Ursa Menor pendura seu pequenino-farol à entrada da tenda
cavando uma pequena vala com suas unhas na terra seca,
o Petros e o Vassílis ou o Ti' Andónis
procurando dentro da trouxa certa colher perdida ou o púcaro,
suas mãos ficam-lentas - esquecem-se
e à sua volta o ar torna-se redondo e imóvel como o azeite dentro da dorna
e o silêncio fica como a pedra-de-moinho quando lhe cortam a água.

Então ouvimos de súbito aquele esquecido som
como se cortassem com esta tesourinha os papéis do guarda-pratos em véspera de Natal,
como se erguidos nas pontas dos pés acendêssemos na lua o nosso cigarro.

E então sabemos que lá-bem-no-fundo das nossas malas,
por debaixo das não-lavadas camisas e das esburacadas peúgas,
resta ainda uma toalhinha bordada de familiar serenidade
e aquela sombra de duas mãos amadas como duas grandes secas parras.

E é estranho. Queremos chorar.              
                   
Giánnis Ritsos (1909 - 1990) | Antologia | Fora do Texto | 1993 | Trad. Custódio Magueijo