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novembro 06, 2020

([#1] Resposta de ninguém)

 1

ligeiramente suspenso, pensei: nunca mais

poderei esquecê-lo. as longas, secas

estradas; os passos na água, nus,

e a perfeita esfera dos versos;

o instante em que o céu é redondo e

inútil,

são-me memória deste chãos, deste cuspo

espantado, no silêncio aberto das coisas.


mudo de rosto para ver-te. nenhum deus

te possui. o caule

do vento te cobre.

e descemos a luz, a transparência

os corredores solenes da lembrança

onde dormidas fúrias anoitecem.

confio na muda boa, ó gume fulvo

de ninguém!


as palavras existem no intervalo das palavras.

nenhuma imagem é o permanente futuro dos corpos

quando se enlaçam, quando se sonham

a colina e a água,

a cidade e o rosto 

móvel da multidão apaixonada,

que se afasta correndo para o lado da terra

onde jamais arderam.

António Franco Alexandre | Poemas | Assírio&Alvim


dezembro 28, 2016

10
apenas um instante e as coisas mudam-se
umas nas outras enlaçadas,
então ocorre perguntar: porque não começa
a vida? noite após noite, os vastos
entrepostos alcatroados permanecem vazios,
e é possível, de longe, avistar as fogueiras
que a chuva ateia, e debaixo do lodo os corpos
abandonados pela guerra.

o universo, dirás, expande-se
e contrai... mas entretanto
já a folha corrói o desejado,
e a doença do verme anima o verso.
como esperar? são pálidas as bocas
a vídeo no vinil e na placenta,
e se perdeu a vaga parecença
da paisagem.

vamos por aí fora, ao deus dará, vertidos
em rima tosca,
serão sempre horas de partir, de beijar,
de voltar a casa para um jantar de madrugada,
de ir ao cinema pra esquecer, de ficar
solto numa esquina, esquecido,
depois basta deitar fora toda a água parada
e será verão.              

António Franco Alexandre | Segundas moradas in Poemas | Assírio & Alvim |1996

dezembro 23, 2016

18
e no detalhe
habita um deus: partilho
essa convicção simples, dura como um seixo.
de todas as palavras, só uma irá bater 
à porta do desconhecido,
entrar no coração, dar as boas-vindas,
e todas poderão ruir, e ela ficará latejando
no sangue das primeiras núpcias.

eu calculo a passagem do estorninho e da poupa, vejo
a exacta emoção da inexacta curva,
o rastro, facilmente luminoso.
a terra cresce para todos nós, tão rápida nos ramos,
só o vento a detém. um dia       
seremos úteis e preciosos como a erva e a cabra,
e ricos de virtude saberemos
o que fazer para morrer, não morrer, entretanto

ela lateja na núpcia do sangue, inteiramente ignorante
do grande sentido de tudo isto,
egoísta como a primeira mão
que nos tocou,
um destino leviano, sensível, pacato,
depois o sulco deixado reparte as colinas
e o pequeno piano repete
a criação do mundo.
    
António Franco Alexandre | Segundas moradas in Poemas | Assírio & Alvim |1996

dezembro 20, 2016

é no meu corpo que morreste, agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormiram as

conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;

os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na

sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.      

António Franco Alexandre | Poemas | Assírio & Alvim |1996

outubro 22, 2016

Mantra combate (que rima)

PLAY Linda Martini | Amor Combate

Vou escrever-nos no livro das memórias grandes,
lançá-lo aos elementos,
para não mais abrir.

Entre pó e tempestades, engrandecê-lo na idade,
perfeito e eterno 
como exemplo a não seguir.

Quando no gume da liça:
- Amor ou Liberdade?
Grito de pulmão cheio:
- Liberdade, meu senhor!

E (em)quanto vivo o nome, não importa qual,
respirarei, em obra ressuscitada,
tão perfeitamente inacabada.

abril 18, 2016

fico aguardando telegramas, os azuis
recados.
os poderes da manhã já pouco duram.
à superfície o som move na boca

um pouco sopro.
não julgues que me importam as roldanas
do tempo no teu corpo

são certos os abismos de cartão
e falsa a neve que nos cobre os passos.
de graça a terra nos dispõe na foto
e a idade inventa nomes que a dissipem

descobre-me impacientes os recados
o envelope da urgência o intervalo

António Franco Alexandre | A pequena face | Assírio&Alvim | 1983

fevereiro 04, 2016

volto à cegueira a reflexão sonora
há um lugar incerto onde aconteço
vou pela areia liminar de inverno
mexendo tão somente os vocativos

atei o vento à estaca de madeira
senhor de esquinas lâminas de terra
e sonhei ser ateu e a ingratidão 
descia na colina as redes de água

não vi não vejo os muros na brancura
os olhos que inventavam o aroma

pouco a pouco afasto das palavras
o som que importa
pobre de quem ouviu e não entende
pobre quem entendeu e já não ouve.     


António Franco Alexandre,  

A Pequena Face,  Assírio&Alvim, 1983

janeiro 20, 2016

esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo

culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.


António Franco Alexandre,  

A Pequena Face,  Assírio&Alvim, 1983

maio 20, 2015

19
Já nasceste a saber o que eu não sei,
o que o lume na água mais procura;
se me dás de beber vou ter a sede
incessante da fonte mais impura.
Cada noite te peço que imagines
uma outra fina, elementar tortura,
como essa, de nunca mais arder
o corpo que no corpo se insinua.
Por cada gesto teu, leio almanaques
de vãs filosofias, para ter
a réplica prevista à sua altura;
por cada lábio, sou mais sábio que
toda a corte celeste talmudista;
e ainda não sei o que ao nascer sabias.

António Franco Alexandre,

Duende,  Assírio&Alvim, 2003


15
Se nas palavras vou um pouco sempre
adiantado, como uma quimera
daquelas bem reais que têm bico
e corpo de lagarto? e rosto humano?
é que também não vivo neste instante
mas noutro, inteiramente coincidente.
Jamais aceitarei que o mundo seja
vago manto de montanhas,
alguns bichos na água, outros em terra,
outros voando em fútil incerteza.
Se me prendo ao teu rumor ausente
não é que me consuma numa imagem
ou deseje real o imaginado;
é por outro real em ti presente.

António Franco Alexandre
Duende, Assírio&Alvim, 2003


abril 15, 2015

©Angela Bacon-Kidwell | Fade to Black 

                     
                  3
Fica dentro de mim, como se fosse
eterno o movimento do teu corpo,
e na carne rasgada ainda pudesse
a noite escura iluminar-te o rosto.
No teu suor é que adivinho rastro
das palavras de amor que não disseste,
e no teu dorso nu escrevo o verso
em pura solidão acontecido.
Transformo-me nas coisas que tocaste,
crescem-me seios com que te alimente
o coração demente e mal fingido;
depois serei a forma que deixaste
gravada a lume com sabor a cio
na carícia de um gesto fugidio.

António Franco Alexandre,
Duende, Assírio & Alvim, 2002

abril 06, 2015

6
inventa-me feliz com palavras e pássaros
e a cabeça encostada na brancura
com o céu que a lua baixa sobre a terra
e um horizonte vivo de clareiras

habita-me de sons quase iguais às palavras
e de pássaros voando adormecidos
esquece o que hoje esqueces permanece
o risco da ventura

António Franco Alexandre
Visitação V in
Poemas, Assírio & Alvim, 1996

janeiro 15, 2015

aqui estou eu entre demónios e paredes lisas
solicitando certificados bulas para viver melhor à sexta-feira
vale-me não ser ninguém: faziam-me a vida negra
assim basta o cinzento fato completo silencioso em lugar para os olhos 
levantar cedo ver passar os carros
estar certo que o que digo já foi dito e selado
agora não me resta poesia alguns dias mais oscilando a cabeça
fazendo que sim

dá vontade de fugir vomitando tudo em volta mas o preço é preciso
se ao menos inventasse a cura do ar podia secar tranquilamente
agora espero pelo meio do escuro para gritar errei! errei! desmanchando o 
                                                                                                               [cabelo

nada disto é a minha vida!
para que ninguém ouça nas coloridas salas do inferno terceira repartição
onde somos, mas todos, contínuos de comer por fora
Melhor seria ter ficado de lado entregue à simplicidade dos caminhos
sabendo que em nenhum lugar está a minha parte

Ao atravessar as ruas há outros como eu
a jeito para enfiar uma navalha ao fim da tarde
Aqueles para quem o mundo ia ser outro de mãos lavadas
e ficou tudo igual com mais ausentes à mistura
Um dia destes dou baixa dos infernos por motivo de cegueira interna
ou mando-me de um sítio alto
depois não sei se voltarei feito demónio de província
ou ficarei eterno como um exemplo a não seguir  
       
António Franco Alexandre, Poemas, 
Assírio & Alvim, 1996

dezembro 19, 2014

António Franco Alexandre

Sem palavras nem coisas

1

acendo o ramo e a folha cai nos dedos,
cai no azul e alarga-se, cai devagar, acendo
as pálpebras (neste perigo mudo de escolher dividindo
o som de tiros altos em volta ao corredor),
cai sobre o som, cai sobre as pálpebras, e 
os olhos de granito onde espreitam as folhas;
dividindo, separando, escolhendo, ilusão de cenário com
ramos acesos, os dedos (entra pela esquerda
o projector caindo, como luz sobre os tiros) no
azul devagar das veias abertas, dividindo,
as unhas, a minúcia, e alarga-se, cai
sobre os ramos, e os braços, as mãos
misturadas, o sexo, a boca, o
ouvido; acendo as veias e os
tiros caindo, a bala misturada no sangue,
até virar a página e respirar
o vento de asas, divido, separo, escolho
de pé no corredor entornando os cabelos,
cai sobre os tiros, cai certeira,
entorna o sexo no azul dos dedos,
dividindo o granito, acendo
o cenário e as pálpebras separam
os ramos dos braços, cai sobre as veias,
cai no silêncio e espalha-se e cobre
o som das asas altas, e entorna
o projector nos olhos, escolhendo, dividindo,
sai ao som dos tiros e acende a boca,
e alarga-se, cai sobre o vento, respira
as unhas misturadas, devagar separo
a luz das folhas, e os tiros sobre os dedos
espreitam no silêncio, as pálpebras, a minúcia,
até virar os ramos no corredor aberto,
dividindo, separando, escolhendo as balas dos
projectores, caindo
cai no azul, cai dos ramos nas
folhas dos tiros,
cai sobre a página, e as asas misturadas,
as pálpebras, deste perigo mudo de escolher
dividindo, cai no azul e alarga-se, cai
devagar, acendo
o ramo e a folha cai dos dedos.
2
entrar de repente pelos olhos adentro e escancarar
as árvores: mas aquilo que amaste perdura.
junto da água morna os animais aguardam o ruído
vegetal da noite, e as luzes bocejam
a mansidão das pernas esticadas: o amor
não tem tempo, e dura no que amaste.
Dura de repente nos olhos abertos e
a água respira no flanco dos animais
bocejando devagar a chegada da noite e das 
redes e os passos mornos dos caçadores,
e as luzes escancaradas do silêncio. Dura
esticado nas árvores, dura mansamente sem 
palavras nem coisas, sem tempo para
aguardar as mãos do caçador e as redes
mornas respirando sobre a água: aquilo
que amaste perdura.

3

enquanto escreve, lês, os tiros vão caindo
sobre o que amaste, e as luzes
dividem o silêncio,
as redes nas mãos do caçador
abrem na água o corredor das unhas,
enquanto aguardas caem os ramos, cai
o projector da noite no bocejo morno
das asas misturadas,
enquanto divides, separas os animais
e as árvores, o flanco dos olhos
e a minúcia do tempo, caem
as pálpebras no sangue, enquanto escolhes
e as pernas se escancaram,
as folhas duram no azul das coisas,
acendo o amor e as balas inclinam-se
nos passos do granito,
enquanto esperas junto da água e 
as luzes se acendem sobre os dedos
o amor perdura de dentro dos tiros,
dividindo, escolhendo, aguardando, a chegada
da noite sobre os pulsos, os ramos,
enquanto entras nas veias o projector
inclina-se no tempo, cai
nas redes esticadas do silêncio,
separando o que amaste das unhas
dos animais que aguardam a minúcia
da água caindo, enquanto dura
a ilusão do cenário sobre o vento,
vê, enquanto os ramos duram nos olhos
do caçador, e as pálpebras mornas bocejam,
são as folhas que caem dos ramos acesos
sobre a água, sobre os olhos mansos
dos animais que aguardam junto às redes,
sobre o azul dos dedos, sobre os passos 
dos projectores da noite de repente inclinados,
sobre as mão esticadas do silêncio, 
sobre o que amaste, vê, sobre
o que perdura, enquanto aguardas
e divides, 
enquanto escreves, lês, cai sobre o que amaste,
caem os tiros altos sobre o que amas.

4
se perdura nos tiros, se perdura
entre os ramos acesos e a queda dos tiros,
porque perdura, sem palavras nem coisas,
nos olhos do silêncio junto à água
aguardando o ruído vegetal da noite,
nos espaços das redes quando caem,
porque pedura, vê, nas mãos do caçador
enaqunto apago um a um os projectores
e as folhas caem no corredor dos dedos
e perdura, vê, nas pernas inclinadas,
nas veias mansamente abertas, no flanco
da água,
sem tempo para escolher, separar,
dividir, perdura de repente dentro das asas,
vê, perdura na minúcia dos pulsos,
o que amaste perdura, não tem tempo
para se perder,
palavras que dividam, vê, coisas que te separem,
redes que caiam no silêncio das mãos,
folhas que guardem
a ilusão do caçador.

5
então me deito junto água e entro
de repente nos pulsos: o que amei perdura,
vão-se apagando lentamente as asas
inclinadas dos projectores, as pálpebras
bocejam a alegria do azul dos dedos,
estendo os braços e os animais aguardam
de dentro das redes esticadas, abertas,
e um pássaro pousa nos ramos, nas folhas,
seguro do silêncio onde os tiros caem
sobre a água e devagar mergulham,
e respiram no fundo um corredor imóvel.


(António Franco Alexandre
Poemas)