dezembro 19, 2014

António Franco Alexandre

Sem palavras nem coisas

1

acendo o ramo e a folha cai nos dedos,
cai no azul e alarga-se, cai devagar, acendo
as pálpebras (neste perigo mudo de escolher dividindo
o som de tiros altos em volta ao corredor),
cai sobre o som, cai sobre as pálpebras, e 
os olhos de granito onde espreitam as folhas;
dividindo, separando, escolhendo, ilusão de cenário com
ramos acesos, os dedos (entra pela esquerda
o projector caindo, como luz sobre os tiros) no
azul devagar das veias abertas, dividindo,
as unhas, a minúcia, e alarga-se, cai
sobre os ramos, e os braços, as mãos
misturadas, o sexo, a boca, o
ouvido; acendo as veias e os
tiros caindo, a bala misturada no sangue,
até virar a página e respirar
o vento de asas, divido, separo, escolho
de pé no corredor entornando os cabelos,
cai sobre os tiros, cai certeira,
entorna o sexo no azul dos dedos,
dividindo o granito, acendo
o cenário e as pálpebras separam
os ramos dos braços, cai sobre as veias,
cai no silêncio e espalha-se e cobre
o som das asas altas, e entorna
o projector nos olhos, escolhendo, dividindo,
sai ao som dos tiros e acende a boca,
e alarga-se, cai sobre o vento, respira
as unhas misturadas, devagar separo
a luz das folhas, e os tiros sobre os dedos
espreitam no silêncio, as pálpebras, a minúcia,
até virar os ramos no corredor aberto,
dividindo, separando, escolhendo as balas dos
projectores, caindo
cai no azul, cai dos ramos nas
folhas dos tiros,
cai sobre a página, e as asas misturadas,
as pálpebras, deste perigo mudo de escolher
dividindo, cai no azul e alarga-se, cai
devagar, acendo
o ramo e a folha cai dos dedos.
2
entrar de repente pelos olhos adentro e escancarar
as árvores: mas aquilo que amaste perdura.
junto da água morna os animais aguardam o ruído
vegetal da noite, e as luzes bocejam
a mansidão das pernas esticadas: o amor
não tem tempo, e dura no que amaste.
Dura de repente nos olhos abertos e
a água respira no flanco dos animais
bocejando devagar a chegada da noite e das 
redes e os passos mornos dos caçadores,
e as luzes escancaradas do silêncio. Dura
esticado nas árvores, dura mansamente sem 
palavras nem coisas, sem tempo para
aguardar as mãos do caçador e as redes
mornas respirando sobre a água: aquilo
que amaste perdura.

3

enquanto escreve, lês, os tiros vão caindo
sobre o que amaste, e as luzes
dividem o silêncio,
as redes nas mãos do caçador
abrem na água o corredor das unhas,
enquanto aguardas caem os ramos, cai
o projector da noite no bocejo morno
das asas misturadas,
enquanto divides, separas os animais
e as árvores, o flanco dos olhos
e a minúcia do tempo, caem
as pálpebras no sangue, enquanto escolhes
e as pernas se escancaram,
as folhas duram no azul das coisas,
acendo o amor e as balas inclinam-se
nos passos do granito,
enquanto esperas junto da água e 
as luzes se acendem sobre os dedos
o amor perdura de dentro dos tiros,
dividindo, escolhendo, aguardando, a chegada
da noite sobre os pulsos, os ramos,
enquanto entras nas veias o projector
inclina-se no tempo, cai
nas redes esticadas do silêncio,
separando o que amaste das unhas
dos animais que aguardam a minúcia
da água caindo, enquanto dura
a ilusão do cenário sobre o vento,
vê, enquanto os ramos duram nos olhos
do caçador, e as pálpebras mornas bocejam,
são as folhas que caem dos ramos acesos
sobre a água, sobre os olhos mansos
dos animais que aguardam junto às redes,
sobre o azul dos dedos, sobre os passos 
dos projectores da noite de repente inclinados,
sobre as mão esticadas do silêncio, 
sobre o que amaste, vê, sobre
o que perdura, enquanto aguardas
e divides, 
enquanto escreves, lês, cai sobre o que amaste,
caem os tiros altos sobre o que amas.

4
se perdura nos tiros, se perdura
entre os ramos acesos e a queda dos tiros,
porque perdura, sem palavras nem coisas,
nos olhos do silêncio junto à água
aguardando o ruído vegetal da noite,
nos espaços das redes quando caem,
porque pedura, vê, nas mãos do caçador
enaqunto apago um a um os projectores
e as folhas caem no corredor dos dedos
e perdura, vê, nas pernas inclinadas,
nas veias mansamente abertas, no flanco
da água,
sem tempo para escolher, separar,
dividir, perdura de repente dentro das asas,
vê, perdura na minúcia dos pulsos,
o que amaste perdura, não tem tempo
para se perder,
palavras que dividam, vê, coisas que te separem,
redes que caiam no silêncio das mãos,
folhas que guardem
a ilusão do caçador.

5
então me deito junto água e entro
de repente nos pulsos: o que amei perdura,
vão-se apagando lentamente as asas
inclinadas dos projectores, as pálpebras
bocejam a alegria do azul dos dedos,
estendo os braços e os animais aguardam
de dentro das redes esticadas, abertas,
e um pássaro pousa nos ramos, nas folhas,
seguro do silêncio onde os tiros caem
sobre a água e devagar mergulham,
e respiram no fundo um corredor imóvel.


(António Franco Alexandre
Poemas)