dezembro 28, 2014

"Vou de casa em casa como os monges da Idade Média que distraíam viúvas e donzelas com rosários e baladas. Sou um peregrino, um vendedor ambulante pagando a hospedagem com uma canção, um convidado pouco exigente que facilmente se contenta. Muitas vezes, aceito o melhor quarto e durmo sob um dossel, outras durmo num palheiro. As pulgas não me incomodam e também não me queixo das sedas.  Sou muito tolerante. Nada tenho de moralista. Sou demasiado consciente da brevidade da vida e da sua complexidade, para me dedicar a traçar linhas de demarcação a tinta vermelha. E, no entanto, não sou tão desprovido de rigor como vocês pensam, ao julgarem-me pela facilidade com que falo. Escondo na manga um pequeno punhal de desprezo e severidade. Mas é fácil desviarem o golpe. De qualquer coisa faço brincadeiras. Uma rapariga está sentada à entrada de uma cabana. A rapariga espera. Quem espera ela? Terá sido seduzida? O reitor vê um buraco no tapete. Suspira. A sua mulher passando os dedos pelas ondas da cabeleira ainda abundante, reflecte, etc. Mãos que acenam, pessoas que hesitam nas esquinas das ruas, alguém que lança um cigarro na valeta, outras tantas histórias. Mas qual será a verdadeira? Não sei. É por isso que as minhas frases se mantêm suspensas, como as roupas num armário, aguardando que alguém as vista. Ocupado nessa espera, nas minhas meditações, e no meu caderno de notas, vivo desligado da vida. Serei afastado, como se afasta uma abelha do girassol. A minha filosofia acumula-se e espalha-se em todas as direcções como o mercúrio. Mas Louis, o severo Louis de olhos loucos, chegou no seu sótão e no seu escritório a conclusões definitivas sobre a verdadeira natureza do conhecimento."


Virginia Woolf,  As ondas, Relógio D'Água