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outubro 01, 2022


 © Elliott_Erwitt | Paris. 1998. 

Eu era lume sobre sede e tu procuravas dar-me a beber, gomo a gomo, laranja-cor-de-sangue de Simic. Demoravas repetidas vezes:

- A laranja parte-se em silêncio à entrada de noites fabulosas.

E eu ouvia cada sílaba, na cadência dos teus lábios secos. Não entendia. Sempre ouvira dizer que de manhã é ouro, à tarde prata mas que, à noite, a laranja mata. E era noite. Demasiadamente noite.

Desesperada, repeti, em fuga, baixo contínuo, o que me pareceu uma troca justa.

|| Um gomo por uma nota de Bach. Uma sílaba tua por uma nota de Bach:||

Tu recusaste. Disseste que eu não tinha a cabeça de vidro.

- Não és transparente e não se come laranja com a boca suja. Não distinguirias o doce da laranja do amargo da palavra. Nunca, para ti, o gomo secreto de Al Berto. Não és do lado de fora da cidade.

Ficámos em silêncio. 

Impusemos a despedida.

________________________

Hoje, ainda te oiço:

- Tu não tens como matar a sede.

Concordo. Nunca possuirei a transparência louca e ácida de quem compreende a laranja. Mas releio-me na "alta solidão que nem pode ser nossa de tão pura". 

E eu sei que

não há sede que a palavra, nos teus lábios, não (me) mate.

junho 03, 2021

 

©Elliott Erwitt | North Carolina | 1950

A Coluna Poética
Versos
em lugar de soldados,
oliveiras em lugar de mastros,
festas, não trincheiras,
não fuzis,
estrofes,
flores em lugar de bandeiras,
jardins,
não cercos, não chekas,
não uniformes,
poemas,
ingénuos no lugar de espias,
liberdade, não vitória,
verso livre em lugar de regras,
moinhos em lugar de gigantes,
crianças com pele de homem,
não assassinos
com pele de justiceiros,
romances em lugar de estratégias,
asas
para mentes, não grades,
aventuras
em lugar de tácticas,
liras, não tambores,
pessoas curvas, não pessoas rectas,
não intriga,
música
sonhos em lugar de radares
coplas, não discursos e arengas,
viagens, não desfiles,
licenças poéticas,
não recrutamentos,
não fronteiras,
sonhadores,
não dominantes e dominados,
a conquista da inocência
não a conquista do mundo,
nocturnos, não dianas,
não seitas, não máfias,
únicos e companheiros,
não grandes parlamentos,
pequenas assembleias,
odes,
cânticos,
não julgamentos, não trompetas,
ideia ao serviço das vidas,
não vidas
escravas das ideias,
dos seus profetas,
românticos,
não chefes e subalternos
(praga
de chefes e subalternos!),
líricos,
não fanáticos,
contemplação,
não ordeno e mando.
Como?
Quando?
Adiante a Coluna Poética!
Jesús Lizano | Mundo Real Poético

agosto 01, 2018

©Elliot Erwitt | Ceremony for the crowning of the Shah 1967 | Teheran
"Mas uma vassoura, podereis vós dizer-me, é o símbolo de uma árvore que se sustenta sobre a própria cabeça; e eu respondo-vos: o que é o homem senão uma criatura virada ao contrário, com as suas faculdades animais perpetuamente a cavalo das suas faculdades racionais e com a cabeça no sítio dos calcanhares a rastejas pelo chão? E mesmo assim, com tantas deficiências, ele erige-se em reformador universal, em destruidor de abusos, cavaleiro andante de todos os agravos, sempre a esquadrinhar os esquálidos recantos da natureza, a trazer para a luz do dia as podridões ocultas, a erguer poeiras consideráveis nos locais onde nem sequer elas existem deixando-se tomar muitas vezes da sujidade que deseja limpar; os seus últimos dias passa-os escravizado às mulheres, que como sua irmã vassoura, gasto até aos restos, é deitado pela porta fora ou empregado em acender fogueiras a que outros se vêm aquecer."
Jonathan Swift (1667-1745) | Meditações sobre uma vassoura | in Antologia do Humor Negro | fernando ribeiro de melo - edições afrodite | 1973

janeiro 27, 2017

©Elliott_Erwitt | ENGLAND. Brighton | 1970

PLAY Glenn Branca | Spiritual Anarchy

"Lívio (off): O meu pai era um tipo melancólico.
Caçava moscas e lia Camilo.
Morreu.
A minha mãe olhava-me com desgosto.
Sem razão. Parece-me. Não sei.
Digamos que hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo.
Não podes perceber.
Talvez enlouqueça o suficiente para gritar ai ai.
Um dia destes vou-me embora.
Paris, Roma, Milano, London Town, Florença, a bela, Cesário Verde, São Pettersburgo - o Mundo.
Afinal os crimes são as coisas que se repetem, etc."

in quem espera por sapatos de defunto morre descalço
João César Monteiro (1969) | Obra Escrita 1 | Letra Livre | 2014

janeiro 01, 2017

©Elliott Erwitt | 1950
PLAY Tiago Bettencourt & Dalila Carmo | Tiago na toca e os poetas "Nós somos" 


NÓS SOMOS 
Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos. 
António Ramos Rosa

dezembro 22, 2016

©Elliott Erwitt | SPAIN. Madrid | 1995.
PLAY Peggy Lee | Fever

junho 20, 2015

O erro

©Elliott Erwitt SPAIN. Madrid. 1995. Prado Museum.
PLAY Carlos Seixas Toccata e Menuet (Piano)
"Eu não cometo erros desses. Eu cometo erros daqueles.
(Não cometer o erro num lado é cometer o erro noutro. Porque há um equilíbrio entre as coisas. Há dois lados que têm coisas.)
Se tu não falhaste, procura onde falhaste, pois não há o não falhar, só o olhar para o sítio onde não se falha.
Olha, então, para o outro sítio. As tuas costas."
Gonçalo M. Tavares
Breves notas sobre a ciência, Relógio D'Água, 2012

junho 16, 2015

©Elliott Erwitt NICARAGUA. Managua. 1957

quando
P   A   R   E   C   E   R
não rima com
S   E   R
PLAY Anna Calvi, David Byrne Strange Weather

maio 03, 2015

©Elliott Erwitt. ITALY. Rome. 2008

Como tatuagem de palavra
deglutida e depurada,
somos mínimos terrestres
em deificada ascensão.

"When I am laid, am laid in earth, 
May my wrongs create
No trouble, no trouble in thy breast;

Remember me, remember me, but ah! forget my fate.
Remember me, but ah! forget my fate."
(Nahum Teate)

fevereiro 28, 2015

©Elliott Erwitt

Saíam olhos pela boca e ouvidos pelas mãos. Quando falava, via o mundo acontecer-lhe. Em cada palmo era o som das esferas que tacteava. O mundo, esse mistério impróprio para consumo, absorvia-o pelos sentidos. Mas era vê-lo, ao mundo, em cada movimento seu. Como se o dia rompesse na aurora da roda dos seus passos e os anos passassem, de solstício em equinócio, na translação dos seus sentidos. Vê-lo mover-se não era diferente de entender o sentido universal dos movimentos gerais e particulares.

Os sorrisos eram, no entanto, desorganizados, anacrónicos e etéreos, aconteciam reproduzindo um sem-dono ou, simplesmente, um roubo. Os sorrisos denunciavam auroras passadas, recordações quiméricas do Dia da Inocência- mas nunca desistia deles, ou eles dele- porque os sorrisos eram uma espécie de casa-abrigo em órbita.

A sua ética substantiva subjugava-se a adjectivos com diploma de máxima qualificação. Ou seja, não podia dizer-se que devia amor ao mundo, ou compaixão, ou força centrípeta de qualquer satélite celular. A sua ordem era a do mundo e a da sombra do mundo, autenticada em cada movimento seu, (de)composto em tangentes de importância jugular.

Um dia o mundo quis ser solísticio e ele passou a existir na sombra de um amanhecer. Foi o dia em que se fez maior.
     
 PLAY Jorge Lima Barreto Solstice II


agosto 04, 2014



©Elliott Erwitt

PLAY L'Arpeggiata, Music for a While - Oedipus, King of Thebes

"Music for a while
Shall all your cares beguile.
Wond'ring how your pains were eased
And disdaining to be pleas'd
Till Alecto free the dead
From their eternal bands,
Till the snakes drop from her head,
And the whip from out her hands."

Henry Purcell, John Dryden, Nathaniel Lee

As mães não sabem voar porque os pés são o sul e a terra o norte do íman. Por isso, são pesadas, nunca chegam longe. Nunca apanham os filhos no jogo do "não me apanhas". Como são grandes, as mães não jogam às escondidas, em qualquer lugar os filhos descobrem-lhes a sombra.
As mães só sabem jogar à cabra cega. E sem venda, ou olhos fechados. De olhos abertos já nada veem. 
Depois do jogo, calçam luvas para dar colo aos filhos e, quando o esvaziam, colocam-nas a arejar, penduram o cheiro da pele no arame. 

As mães não tiram as cobras das cabeças dos filhos porque não sabem tocar flauta ou encantar.
Na hora do abraço, pesam-no, em gramas, o abraço é caro precisa de ser doseado. As mães marcam a hora das necessidades dos filhos, mas o amor, quando chega, é atrasado.