PLAY António Fragoso: Prelúdio (de "Petite Suite"). (Miguel Henriques, piano)
"Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós
gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez
feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso
trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me
queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se
balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão
dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer,
à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero,
dizia nosso olhar sem humidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza
de não repartir o sábado, ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que
qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite.
Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se
quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogéneo, sonhador e
resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer
trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que
correria de coração batendo para outros, outros cavalos.
Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando
surpreendidos deparámos com a mesa. Não podia ser para nós...
Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que
não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a
quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se
espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele
quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria,
laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se
fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam
nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas húmidas de milho, ruivas como junto de
uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo
instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram
redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a
laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse. Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera –
mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes
ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela
acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se
tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão
pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido
desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como
existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os
ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.
Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós
pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da
vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos
comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo
que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da
espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos
com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos
tomava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá
fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne
trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de
ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se
trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra.
Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e
come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o
seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera:
come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem
ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade
nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão,
e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida
porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma
palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós
comemos. Pão é amor entre estranhos."
Clarice Lispector (1964)
Legião Estrangeira in Contos, Relógio D'Água, 2006