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fevereiro 02, 2024

 

©raquelsav | 2022 | Alcobaça (Espanha)

Quando penso em Portugal e respetivas oportunidades, alternativas, ensejos, etc., ocorre-me esta foto. Retrata uma remota localidade espanhola, fronteiriça, chamada Alcobaça - muito próxima de Castro Laboreiro. Na placa, de leitura difícil, lê-se Portugal. Para quem, de regresso, avista uma placa com o nome do seu país, é levado a respirar de alívio. Contudo, a placa conduz-nos a uma estrada estreitíssima, nada apelativa a condutores menos experientes ou afoitos. Chegamos a Portugal se confiarmos no caminho que nos indicam? Talvez! Mas não sem danificar a viatura e vendo vedada a possibilidade de inverter a marcha. A decisão não é difícil. Seguimos, então, de olhos bem fechados, pelo atalho de terra batida, ali mesmo ao lado, sem meta que se afigure, sem chão que se palpe. Não há-de ser pior do que as rasteiras do caminho “seguro”. Chegaremos, sem dúvida, sãos e salvos, mas muito tardiamente e quase mortos de cansaço. Quase mortos e só quase- porque isto de ser português de Portugal não mata, de facto, só mói.

janeiro 25, 2024

 

©raquelsav | 2024

O REGRESSO DO MUNDO

Abrir os olhos, já depois da noite
ter recluído os astros em sua ampla gruta límpida,
e ver, por trás do vidro,
já visíveis os pássaros
na redoma ainda pálida do sol,
a mover-se nos ramos.
E cantos que tornam minha a abóboda do ar.
E sentir que ainda pulsa em meu peito
o coração daquele menino,
e na manhã amar a vida que passou,
e esta mágica surpresa
de amar ainda o mundo na manhã.
E no nome do mar, que está longínquo
e azul, sempre estendido
desde o distante amanhecer do mundo,
minha testa persignar, depois o peito,
os delicados ombros que ora toco,
e beijar, com o lábios do menino que regressa,
este mundo tão velho,
que não consigo hoje saber
porque, se não morreu o amor,
me quer abandonar.

Francisco Brines | A última Costa |Assírio & Alvim | 1997

outubro 29, 2022

Funchal, década de 60
Padre João Vieira (15.02.1927 - 24.10.2022)


Ao homem leve, sobram coisas às coisas,
faltam adjetivos aos nomes
e assomam os verbos fora do tempo,
entre um passado por vir 
e um futuro que passou.

O homem leve não tira os pés do chão,
para conduzir os passos no ar,
perfila-os bem assentes na terra,
 equilibrados sem agravo
e sem tropeço.
Quando caminha, 
impele ao corpo a dança,
constante, decidida,
casta e lídima.
Não se eleva nem levita,
porque ao redor do homem leve
tudo gira, 
tudo orla,
tudo rima
e gravita.

janeiro 21, 2021

 

©raquelsav | 2021

A guilhotina do dia
decapita
a nomenclatura triste das coisas
e tudo passa a ter um só nome,
pressentido, vertiginoso, impronunciável.
Tudo joga o grande jogo:
desfilar,
transitar como um gesto de adeus,
tremer, saltar, pensar ou não pensar,
sentir, cair, calar o nome.
Calar o nome,
dizê-lo
sem a palavra agreste de uma linguagem.
Toda a realidade é afinal isto:
dizer um nome do outro modo.

Roberto Juarroz | Poesia Vertical | Campo das letras| 1998

dezembro 20, 2020

O rosto da voz




ALLERSEELEN

(TODOS-OS-SANTOS)

Que fiz
eu?
Inseminei a noite, como se outras
pudessem vir, mais nocturnas que
esta.

Voo de ave, voo de pedra, mil
trajectórias descritas. Olhares,
pilhados e colhidos. O mar,
provado, sorvido, absorto. Uma hora,
obscurecida de almas. A seguinte, uma luz outonal,
ofertada a um sentimento
cego, que tomou o caminho. Outras, muitas,
sem lugar e pesadas de si mesmas: avistadas e contornadas.
Rochas erráticas, estrelas,
negras e plenas de linguagem: nomeadas
por jura de silêncio rasgado.

E certa vez (quando? também isto se esqueceu):
o pulso sentiu o gancho,
quando ousava desprender-se.

Paul Celan, Não Sabemos mesmo O Que importa, Relógio D'Água, 2014

abril 11, 2020

COMPOSIÇÃO DO LUGAR

Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias baixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida

Ruy Belo | Todos os poemas | Assírio & Alvim

fevereiro 12, 2019

©raquelsav | MM | fev2019


TEORIA SENTADA
II
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca a pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me sobre as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão- é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha. 

herberto helder | Ofício cantante | Assírio & Alvim | 2009

agosto 08, 2018

  

Quis ser, à sombra de ti, a um passo, e fui-o: a um passo, em falso, de mim. 

Que se fodam as réguas e esquadros, as fitas métricas, taxímetros, micrómetros e aristos; que ardam os mapas e GPS's; que se extingam a trigonometria e todas as técnicas antropométricas: não há arte que estime, fiel, a distância de segurança da sombra de nós. 

Que se apague a luz; que se esconda o sol; que se parem os ponteiros ao meio dia; que os passos sejam largos sem sombra que se lhes arraste; que o voo seja pleno sem figura terrestre que o acompanhe: livre é ser só.


março 18, 2018

2
maravilhar-te as insónias
com o paciente crepúsculo da idade
acordar fora do corpo esquecer o olhar
sobre o pêlo ruivo dos animais beber
o fulgor das estrelas no esplendor da alba
nomear-te
para recomeçarmos juntos a vida toda

ensinar-te o segredo dos alquímicos minerais
acender-te um pouco de culpa
na imatura paisagem do coração

eis a travessia que te proponho
amanhecer sem querermos possuir o mundo
e no orvalho da noite saciar o desejo adiado
respirar a músca inaudível das galáxias
sentir o tremeluzir da água no medo da boca

o amor
deve ser esta perseguição de sombras
esta cabeça de mármore decepada
ou este deserto
onde o receio de te perder permanece oculto
na sujidade antiga dos dias

Al Berto | O medo | Assírio&Alvim | 1997

abril 27, 2017


©Kafka’s own doodles
- Passas-me o livro que está em cima da mesa, por favor?
- Este?
- Não. Esse está em cima do sofá.
- Toma.
- Mas este é de BD e não estava em cima da mesa.
- Queres o Beckett?
- Não, não é o Beckett. O Beckett está na prateleira. Quero esse que está em cima da mesa, o Kafka.
- Mãe, eu ainda não sei ler.
- Estou a falar desse livro que está em cima da mesa grande, mesmo à tua frente. Não gozes comigo.
- Este?
- Sim. Irra, que estava difícil. Franz Kafka - o nome do autor.
- Ah, afinal sempre querias o Beckett! (risos)

©Beckett’s doodles from the “Watt” notebooks


fevereiro 20, 2017

Matrimónio, Manicómio

fotograma de Cidade das Mulheres  | Fellini | 1980

"A penetração é um crime que deveria de dar 1 a 10 milhões de multa"