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fevereiro 12, 2019

©raquelsav | MM | fev2019


TEORIA SENTADA
II
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca a pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me sobre as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão- é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha. 

herberto helder | Ofício cantante | Assírio & Alvim | 2009

abril 19, 2016

#1

Não sei como aguardar, nesta urgência de inédito. Também eu gostaria de gritar a liberdade, mas há sempre uma linguagem que sustém os nossos medos. No forro da frustração, guardamos o grunho que queremos emitir. Com ele, a fronteira da nossa humanidade.  Mas nem sempre somos assim tão capazes. Tão predispostos a baixar o nosso preço.  Por isso, nos referimos em terceira pessoa, como se uma ligeira precaução doseasse a linguagem que nos toca.

Negociamos mais cem palavras. E, ao desbarato, compramos cinco mil pelo preço de uma. Mas fazemos mau negócio. Só o descobrimos quando fechamos a porta de casa. Quando sentimos aquele vazio pela compra inútil que fizemos, tão compulsivamente. São somente palavras, concluímos, palavras que não sabemos usar. São palavras sem ideias. Lamentamos a energia que gastámos a tentar compreendê-las.

Um dia, enchi-me de coragem e vesti a camisola. Nela  trazia escrito, preto no branco (ou branco no preto, não sei): "troco mil palavras por uma ideia". Mas o melhor que consegui, até hoje, foi um sorriso e uma proposta indecente, imoral. Aceitei os dois, sem reservas. E voltei a vestir a camisola. Sempre nos foi dito que temos de saber vestir a camisola. E eu não entendo nada de moda. Não entendo nada desta ânsia de se desnudar para mostrar o vazio.

Nesta época de crise, em pura economia de palavras, não sei por que nos demos ao diálogo extensivo. Mas ainda questiono a natureza do nosso encontro, meramente ocasional, dizemos. Assim respiramos melhor, sem atropelos. Não sei, um encontro e mais de mil palavras trocadas, não deveria ser coisa para mudar uma vida. Mas foi.

Está tudo tão certo e errado. Por não entendê-lo, já não falo de nós. Não há nada que consiga acrescentar. Também não falo de mim. Não saberia como. Quando muito, falo dos corpos que em mim repousaram. Sim, quando muito, falo de mim nos corpos deles.

Mas não escondo, que no silêncio dos dias escuros, falo de mim em ti. Guardo as palavras, que só uso nessa ocasião, numa pasta chamada "Eu, Tu e o Mundo, como um Cancro em Nós".

Sabes, tudo deixou de ser puro. A doença alastrou. Já não sei como viver, entregue a este corpo esquecido e a este cancro que nos consome as entranhas. Tudo, em mim, deixou de ser sagrado.

Por respeito, não evocarei o teu nome em vão. E assim farei, enquanto vestir a camisola. Estou certa de que o silêncio é a melhor morada para os nomes puros.