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janeiro 25, 2024

 

©raquelsav | 2024

O REGRESSO DO MUNDO

Abrir os olhos, já depois da noite
ter recluído os astros em sua ampla gruta límpida,
e ver, por trás do vidro,
já visíveis os pássaros
na redoma ainda pálida do sol,
a mover-se nos ramos.
E cantos que tornam minha a abóboda do ar.
E sentir que ainda pulsa em meu peito
o coração daquele menino,
e na manhã amar a vida que passou,
e esta mágica surpresa
de amar ainda o mundo na manhã.
E no nome do mar, que está longínquo
e azul, sempre estendido
desde o distante amanhecer do mundo,
minha testa persignar, depois o peito,
os delicados ombros que ora toco,
e beijar, com o lábios do menino que regressa,
este mundo tão velho,
que não consigo hoje saber
porque, se não morreu o amor,
me quer abandonar.

Francisco Brines | A última Costa |Assírio & Alvim | 1997

outubro 01, 2016

julho 01, 2016

PUMBA!

PLAY Savages | Shut up
"- Para o entenderes tens primeiro de saber o que é aquilo a que se chama normalidade, criatura minha irmã - explicou Ulrich, tentando travar com o gracejo as ideias galopantes. - O normal é uma manada não significar para nós mais do que carne de vaca a pastar. Ou então é um cenário idílico digno de ser pintado. Ou nem sequer reparamos nela. Vacas nos caminhos de montanha fazem parte dos caminhos de montanha, e só saberíamos verdadeiramente o que sentimos ao vê-los se, em seu lugar, ali estivesse um relógio eléctrico ou um prédio de rendimento. Geralmente pensamos: ficamos ou levantamo-nos? Queixamo-nos das moscas que zunem em volta da manada; tentamos perceber se há um touro no meio dela; perguntamo-nos se o caminho continua ou se acaba ali. Um sem-número de pequenos propósitos, preocupações, cálculos e percepções que, todos juntos, formam o papel sobre o qual se pinta a imagem de uma manada. Nada sabemos do papel, apenas vemos a manada em cima dele...
- E de repente o papel rasga-se! - exclama Agathe.
- É isso mesmo. Quer dizer: rasga-se uma qualquer trama de convenções que trazemos em nós. E subitamente o que ali anda a pastar deixa de ser alimento, motivo pictórico, nada me barra o caminho. Já nem sequer és capaz de formar as palavras ‹‹pastar›› ou ‹‹erva››, porque as associas a uma série de ideias úteis e pragmáticas que de um momento para o outro perdeste. Aquilo que fica à superfície do quadro poderia quando muito descrever-se como um ondular de sensações que sobem e descem ou respiram e cintilam como se preenchessem, sem contornos precisos, todo o campo de visão. É claro que o quadro contém muitas percepções isoladas, cores, chifres, movimentos, cheiros e tudo o que faz parte da realidade: mas isso deixa de ser reconhecido, apesar de darmos por essas coisas. O que quero dizer é que os pormenores estão despossuídos do egoísmo por meio do qual chamam a nossa atenção: passaram a estar ligados uns aos outros fraternalmente, literalmente de forma ‹‹‹íntima››. E evidentemente, nesta altura já não existe qualquer ‹‹superfície do quadro››, porque de algum modo todas as coisas extravasaram os seus limites e se passaram para dentro de nós.
E Agathe prosseguiu com a descrição:
-Agora só precisas de substituir o egoísmo dos pormenores pelo egoísmo do ser humano - exclamou -, para chegares àquilo que é tão difícil de exprimir: ‹‹Ama o próximo!›› não significa ama-o tal como és, mas define uma espécie de estado onírico!
-Todos os postulados da moral - confirmou Ulrich - definem uma espécie de estado onírico que já estão para lá das regras com que os formulamos!
- Sendo assim, não existe bem e mal, mas apenas a fé e... dúvida!- exclamou Agathe, que sentia agora como muito próximo, com toda a sua autonomia, e igualmente a sua perda, o estado de fé original assimilado pela moral, de que o irmão falara ao dizer que a fé não tem tempo para envelhecer.
-Pois é - concordou Ulrich -, no momento em que nos libertamos da vida não essencial, tudo entra em novas relações. Quase me apetecia dizer: tudo sai das relações. De facto, a nova relação é absolutamente desconhecida, não temos qualquer experiência dela, e todas as outras relações se apagam. Mas esta outra, apesar da obscuridade, é tão nítida que ninguém a pode negar. É intensa, mas de uma intensidade inapreensível. Poderia também dizer: geralmente olhamos para uma coisa e o olhar é como um pauzinho ou um fio esticado em que se apoiam os olhos e o objecto olhado, e há uma qualquer grande trama deste tipo que sustenta cada segundo. Mas naquela relação de tipo único há, pelo contrário, qualquer coisa de dolorosamente suave que separa as incidências do olhar.
-Não possuímos nada do que há no mundo, nada é sustentado por nós, não somos sustentados por nada - disse Agathe. "


Robert Musil (1880-1942) | O Homem sem Qualidades - Livro Segundo | Dom Quixote | 2008 | 2.ª Ed. |Trad. João Barrento


 PLAY Chopin & Martha Argerich | Andante Spianato & Grande Polonaise Brillante Op.22