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janeiro 02, 2017

Raquel ou Sofia?

 

Paul Valery (1871 -1945) | Fragmentos Narrativos | dois dias edições | 2016

fevereiro 28, 2015

     "A primeira coisa é percorrer o seu domínio.
     Pôr-lhe a seguir um tapume, pois limitado que esteja por outras circunstâncias exteriores, numa tal limitação que não quisermos ter um papel qualquer.
     O homem tenta querer o que não quis.
     Dá-se-lhe uma prisão e dirá: Meto-me nela.
     E de lá não saímos mais do que da masmorra sai quem lhe contou as pedras- ou do que frases escritas em paredes fazem cair essas paredes."

Alguns pensamentos do Senhor Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985
"O interior das coisas
     Durante alguns anos o senhor Valéry ganhou a vida como vendedor do interior das coisas.
     O senhor Valery não vendia os objectos propriamente ditos, mas apenas o seu interior. O comprador levava um prato, por exemplo, mas na verdade só era proprietário do interior desse prato.
     O senhor Valéry explicava:
     - Isto, por exemplo, é um prato. E desenhava
    E o que eu vendo é o interior do prato. E desenhava
     Nessa altura as pessoas diziam:
     -Mas isso que desenhou é o exterior do prato!
     -Sim- respondia o senhor Valéry- mas o que eu vendo não é o que se vê, é o interior.
     -Eu sei que é mais fácil perceber o que é o interior num objecto oco- costumava dizer o senhor Valéry- mas por favor façam um esforço.

    Os problemas, no entanto, começavam quando o proprietário do interior de uma coisa se cruzava com o proprietário do exterior dessa mesma coisa.
     Aí a discussão era grande.
     Na verdade, nunca os dois compradores poderiam ficar contentes, excepto se vivessem na mesma casa. Porém, coincidências como esta não sucedem muitas vezes na vida. Daí o negócio do senhor Valéry não ter resultado.
     Acusaram-nos de aldrabice, mas o senhor Valéry era apenas alguém que pensa muito."

Gonçalo M. Tavares, O senhor Valéry e a lógica, Caminho, 2002

fevereiro 20, 2015

Entre-Paulo's (Senhores e Santos)

   "Aquilo que me faz é o que a mim próprio trago desconhecido.
     Sou realmente o que tenho de inábil e de incerto.
     Minha fraqueza, minha fragilidade...
     A minha base de partida são as lacunas. A impotência que tenho está na minha origem.
     A minha força está em vós. Movimento-me da fraqueza à força que possuo."
Extractos do Log-Book do Senhor Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985


"... quando sou fraco, então é que sou forte."
S. Paulo, 2ª Carta aos Coríntios, 12
Bíblia Sagrada, Edições São Paulo, 1996

#1 Autobiografia


"São belíssimos, os olhos dele; gosto que sejam assim, maiores um pouco do que tudo o que é visível. Nunca saberemos se há coisa que lhe escape, ou - pelo contrário - para ele o mundo não é simples pormenor de tudo o que vêem, mosca-volante que pode obcecar-nos sem existir. Caro Senhor, desde que me casei com o seu amigo nunca pude certificar-me dos seus olhares. O próprio objecto que fixam talvez seja o próprio objecto que o seu espírito pretende reduzir a nada. 
    A nossa vida é sempre aquela que o senhor conhece: nula e inútil a minha; a dele toda hábitos e ausências. Não é que não desperte, não reapareça quando quer e terrivelmente vivo. Gosto muito dele assim. Grande e temível de repente. A maquinaria dos seus actos monótonos explode; o seu rosto cintila; diz coisas que em geral só oiço por metade mas não se apagam mais da minha memória. Não quero, porém, esconder-lhe nada ou quase nada: Acontece-lhe ser muito duro. Não creio que possa outra pessoa sê-lo tanto como ele. Parte-nos o espírito com uma palavra, e tenho a sensação de ser um vaso estragado que o oleiro deita ao lixo. É, caro Senhor, duro como um anjo. Não repara na força que tem: usa inadequadas palavras mas verdadeiras de mais, que aniquilam uma pessoa, sabem acordá-la em plena estupidez, perante si própria, apanhada em cheio no ser aquilo que é e tão naturalmente viver de frioleiras. Vivemos muito à vontade, cada qual no seu absurdo e como peixes na água; só por acidente notamos que a vida das pessoas razoáveis está cheia de estupidez.
     O que pensamos, nunca pensamos que esconde o que somos.  (...)
     O Sr. Teste, aliás, não precisa de falar para restituir às pessoas que o rodeiam à humildade e quase animal simplicidade. A sua existência parece enfraquecer todas as outras, e até as manias que tem conduzem à reflexão.
     Não imagine, porém, que seja sempre difícil ou molesto. Se soubesse como ele pode ser diferente!... Às vezes é duro, de facto, mas tem horas de requintada e surpreendente doçura que o invade e parece caída dos céus. Que mais presente haverá tão misterioso e irresistível como o seu sorriso; a sua preciosa ternura, que é rosa de Inverno. Não se pode, no entanto, prever-lhe facilidade ou violências. É inglório esperar dele rigor ou favor; com profunda distracção e impenetrável ordem de pensamentos, sabe frustrar tos os cálculos que os humanos vulgarmente fazem sobre o carácter dos seus semelhantes. (...) Confesso, no entanto, que nada me liga tanto a ele com esta incerteza de humor. Ao fim e ao cabo, sou bastante feliz por não saber compreendê-lo excessivamente, não adivinhar cada dia, cada noite, cada movimento próximo da minha passagem na terra. "

Carta da Senhora Émilie Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985

     "Bem cedo este homem soube a importância daquilo a que podemos chamar plasticidade humana. Investigara-lhe os limites e o mecanismo. Como ele devia pensar na sua própria maleabilidade!
     Eu vislumbrava sentimentos que me faziam estremecer, uma obstinação terrível em experiências inebriantes. Ele era o ser absorvido na sua variação, aquele que se transforma no seu próprio sistema, o que se entrega inteiro à disciplina assustadora do espírito livre e mata com as suas próprias alegrias as alegrias que tem, a mais fraca com a mais forte- a mais suave, a temporal, a do instante e da hora começada, com a fundamental- com a esperança da fundamental.
     E sentia-o senhor do seu pensamento: escrevo aqui este absurdo. A expressão de um sentimento é sempre absurda."

A noite com o Sr. Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985
    "Vejam-se palavras suas: "Há vinte anos que não tenho livros. E também queimei os meus papéis. Agora risco directamente na carne-viva... Retenho o que quero. Mas difícil não é isso. É reter aquilo que amanhã vou querer!... Andei à procura de uma instintiva peneira..."
     De tanto pensar nisto, acabei por concluir que o Sr. Teste descobrira leis do espírito que ignoramos. Por certo passara anos a investigá-las: e mais certo ainda era ter destinado outros, muitos anos, a amadurecer as invenções que tinha feito para fazer delas os seus instintos. Encontrar nada é. Difícil é acrescentar a nós próprios o que encontramos."

A noite com o Sr. Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985

fevereiro 17, 2015

©Erich Hartmann 1979. USA. New York City. 1979.Shadows meeting on stairway

   
    "O Sr. Teste não tinha opiniões. Julgo que se apaixonava como queria, e para atingir determinado fim. O que fizera da sua personalidade? Ele próprio como se via?... Nunca ria, no seu rosto nunca havia um ar de infortúnio. Tinha ódio à melancolia.
       Falava e a gente sentia-se na ideia dele, confundida com as coisas: a gente sentia-se remota, misturada com as casas, as amplidões do espaço, o colorido buliçoso da rua, as esquinas... E as palavras mais destramente tocantes- as que põem mais perto de nós o seu autor do que outro homem qualquer, fazem crer que a eterna parede entre os espíritos cai- podiam acudir-lhe... Sabia admiravelmente que eram capazes de impressionar qualquer outro. Falava e verificava-se que um grande número de palavras eram banidas do seu discurso, sem no entanto podermos precisar os motivos nem a amplitude dessa proscrição. As que usava eram às vezes tão curiosamente apoiadas pela sua voz, ou iluminadas pela sua frase, que ficavam de peso alterado, de valor novo. Às vezes perdiam todo o sentido, só pareciam encher espaço vazio cujo destinatário termo ainda duvidoso ou não previsto pela língua. Ouvi-o designar um objecto material com um grupo de palavras abstractas e substantivos próprios.
      Ao que ele dizia não havia nenhuma resposta a dar. Matava todos os assentimentos corteses. A conversa era prolongada aos saltos que lhe não causavam espanto."

A noite com o Sr. Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985

fevereiro 10, 2015

PLAY Ayud Ogada, Kothbiro

"Por que hei-de amar o que amo? Odiar o que odeio? 
A quem não apetece derrubar a mesa dos seus desejos e dos seus ascos? Mudar o sentido dos seus movimentos instintivos?
Como é possível que ao mesmo tempo eu seja ponteiro de imã e corpo indiferente?"


Extractos do Log-Book do Senhor Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985

janeiro 28, 2015



«A tolice não é o meu forte. Vi muitos indivíduos; visitei várias nações; tomei parte em cometimentos vários de que não gostei; quase todos os dias comi; e de mulheres também tenho que contar. Revejo agora umas centenas de caras, dois ou três espectáculos, e talvez a substância de vinte livros. Não retive o melhor nem o pior destas coisas: ficou como pôde.

Esta aritmética poupa-me o espanto de envelhecer. Poderia igualmente contar os vitoriosos momentos do meu espírito, imaginá-los juntos e isolados, a formarem uma vida feliz… No entanto estou em crer que me julguei sempre bem julgado. Raramente me perdi de vista; detestei-me, adorei-me; — depois envelhecemos juntos.

Supus muitas vezes que tudo estivesse acabado para mim, eu estivesse a terminar-me com todas as forças, ansioso por me esgotar, esclarecer, qualquer dolorosa situação. Fez-me isto saber que apreciamos excessivamente o nosso pensamento, segundo a expressão do pensamento alheio! Desde aí, os biliões de palavras que andaram a zumbir-me nos ouvidos muito raro me abalaram por aquilo que se queria fazê-las dizer; e as que eu próprio disse a outros senti sempre que se faziam distintas, todas, do meu pensamento; - por ficarem invariáveis »


A noite com o Sr. Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985