fevereiro 28, 2015

"O interior das coisas
     Durante alguns anos o senhor Valéry ganhou a vida como vendedor do interior das coisas.
     O senhor Valery não vendia os objectos propriamente ditos, mas apenas o seu interior. O comprador levava um prato, por exemplo, mas na verdade só era proprietário do interior desse prato.
     O senhor Valéry explicava:
     - Isto, por exemplo, é um prato. E desenhava
    E o que eu vendo é o interior do prato. E desenhava
     Nessa altura as pessoas diziam:
     -Mas isso que desenhou é o exterior do prato!
     -Sim- respondia o senhor Valéry- mas o que eu vendo não é o que se vê, é o interior.
     -Eu sei que é mais fácil perceber o que é o interior num objecto oco- costumava dizer o senhor Valéry- mas por favor façam um esforço.

    Os problemas, no entanto, começavam quando o proprietário do interior de uma coisa se cruzava com o proprietário do exterior dessa mesma coisa.
     Aí a discussão era grande.
     Na verdade, nunca os dois compradores poderiam ficar contentes, excepto se vivessem na mesma casa. Porém, coincidências como esta não sucedem muitas vezes na vida. Daí o negócio do senhor Valéry não ter resultado.
     Acusaram-nos de aldrabice, mas o senhor Valéry era apenas alguém que pensa muito."

Gonçalo M. Tavares, O senhor Valéry e a lógica, Caminho, 2002