Mostrar mensagens com a etiqueta #José Gomes Ferreira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta #José Gomes Ferreira. Mostrar todas as mensagens

junho 15, 2015

doce ironia


©Cornell Capa. International Center of Photography 
PARAGUAY. 1955. Political prisoner.
NÃO CHORO

A dor não me pertence.

Vive fora de mim, na natureza,
livre como a electricidade.

Carrega os céus de sombra,
entra nas plantas,
desfaz as flores...

Corre nas veias do ar,
atrai nos abismos,
curva os pinheiros...

E em certos momentos de penumbra 
iguala-me à paisagem,
surge nos meus olhos
presa a um pássaro a morrer
no céu indiferente.

Mas não choro. Não vale a pena!
A dor não é humana.

José Gomes Ferreira
Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro, 2001, Assírio&Alvim

junho 14, 2015

PLAY This mortal coil Song to the siren

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou  em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo
todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão
de convite para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio.". E então, solenemente, com passos de reter
tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à
despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar
raízes... (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos...)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão
leve... tão subtil... tão pólen... como aquela nuvem além (vêem?) - nesta
tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...

José Gomes Ferreira, Viver sempre também cansa

in Poemas Portugueses Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, 2009