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janeiro 25, 2017

"Meu pai envergonha-me: ousa, numa reunião em que precisamente se encontravam os Pitoëff, declamar, de mão no bolso do colete: Ser ou não ser. Não sei onde me meter.
(...)
Não me deito com homens. Fascinado, estou-o, mas apenas por mim próprio. Época de narcisismo que vai prolongar-se por muito tempo.

Descalço os sapatos e pedalo de pés nus, magoados, feliz.
(...) 
Descoberta dos banhos de água a escaldar. A cabeça anda à roda, a pele fica em carne viva, sofre-se. Limpo o vapor no espelho e masturbo-me.
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Muito mais tarde voltaria a encontrar P. em Paris. Tinha acabado de casar com uma alemã, gorda, desajeitada. Abrira um consultório dentário.‹‹Estabelecia-se››.
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No regresso de Breton, sou submetido ao exame do pequeno surrealista. ‹‹Qual preferes? Baudelaire ou Isidore Ducasse, conde de Lautréamont? - Baudelaire.›› Agravo o meu caso ao citar, entre os poetas contemporâneos que prefiro, Éluard e Tzara (esquecendo Breton). ‹‹Tzara! Quem aprecia os versos de um polícia pode bem ser polícia também››. Reprovado.
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Paul Valéry num camarote, na companhia de uma dama elegantíssima, apupado pelos surrealistas. Entoam em coro: ‹‹Merda para Valéry››.
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Irene masoquista, exibicionista. É sempre culpada, compraz-se na sua culpabilidade. Não me esconde que tem tido amantes desde que vivemos juntos. Diz-me os seus nomes (que de resto adivinhava), conta o que cada um queria dela, o que ela queria deles. Discorre com vagar sobre o seu ‹‹vício››: masturbar-se em frente dos homens, olhando-os fixamente. Mas fala-me também da ‹‹besta›› que a lançou por terra e depois possuiu. Não seria eu que faria o mesmo. As narrativas de Irene excitam-me e irritam-me ao mesmo tempo. Tão depressa murmuro: ‹‹Conta, vamos, conta mais››, como lhe faço cenas de ciúme idiotas.
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É-me difícil dizer como se toldou e acabou o nosso amor, tanto quanto evocar o modo como nasceu e germinou.
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Hugette, à chuva, sempre descalça. A minha boca contra os seus pés molhados; não os retira, mas com um olhar frio, sério, inquisidor, fixa-me.
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Huguette decide sequestrar-me. Habito a mansarda do sexto andar que ela ocupa em casa dos pais, pequenos logistas de bijuterias na rue des Plantes. Toma conta de mim, traz-me de beber, comer, tabaco, não me falta nada, com uma condição: não devo sair. Peço a Huguette o que jamais teria ousado, nem sequer pensar, pedir a Irene: que mije em cima de mim. Aceito. Permaneço seu prisioneiro voluntário quase três semanas.
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Sei o que vai fazer: levantar-se, aproximar-se, beijar-me, passar-me a sífilis. Acordo antes que se debruce sobre mim.

Janeiro de 1933. Meu pai - uma dívida de jogo, o medo do futuro sem saída? - envenena-se. Nessa noite, dormia no meu quarto, mesmo ao lado do seu, e não me apercebi de nada. Detestava o meu pai, portanto fui eu que o matei.
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Terceira classe num navio brasileiro. Vai para Hamburgo, com escala no Havre. 
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Pronuncio inadvertidamente uma palavra em francês, o criado do refeitório aproxima-se. ‹‹Se soubesse que falava francês, tinha-lhe arranjado lugar na mesa dos alemães.››. Raça superior, menu superior.
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16 de Maio de 1941. Campo de concentração de Argèles. Calor sufocante. Em volta de uma fossa onde se amontam restos de legumes podres, seres siminus, descarnados, desdentados, empurram-se, quase lutam entre si.
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1945. Paris. Tomamos conhecimento da existência dos campos de extermínio, dos fornos crematórios. (...) A partida do seu comboio para o campo. A gorda enfermeira alemã que na estação de Estrasburgo passava uma toalha pelos lábios das deportadas para lhes apagar a pintura, a vergonha.
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Encontramos Artaud enfranquecido, aterrorizado. (...) No comboio de regresso, Marthe chora; juramos ambos tirar Artaud de Rodez. Conseguimo-lo, mediante uma caução de mais de um milhão de francos. Leilão conduzido por Pierre Brasseur. Doadores: Braque, Picasso, Giacometti, Sartre, Simone de Beauvoir... Sessão em benefício de Antonin Artaud. (...) Artaud, a cara percorrida por tiques, devastada, cheia de rugas, a boca desdentada, mas onde se escapava de súbito uma voz retumbante, como um uivo. Nós afogados nas suas palavras.
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O suicídio de Antonin Artaud com cloral (a arma maciça).
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Também volto a ver Agathe: não mudou, continua calmamente à espera da morte. Mas agora tem uma filha, uma menina parecida com ela."

Arthur Adamov (1908 - 1969) | O homem e a Criança | Fenda | 1995