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junho 18, 2019

©six_feet_under
"Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões-de-visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso em sítio húmido. (...)

Sempre as mesmas coisas repetidas, as mesmas palavras, os mesmos hábitos. Construímos ao lado da vida outra vida que acabou por nos dominar. Vamos até à cova com palavras. (...)

Se nos detivéssemos com palavras, se avançássemos, todos ao mesmo tempo, esquecendo o que é inútil, para esta coisa que nos devora, subjugávamo-la. Conquistávamo-la por uma vez, por maior que ela fosse. Mas nenhum de nós se atreve e passamos a vida a fingir que não existe "      

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

agosto 19, 2016

nothing really ends

©Luigi Pirandello | Diana e la Tuda | 1926

"Ela foi uma flor que se aspira e se deita fora - quase sem reparar - cismando na imortalidade da alma. As suas palavras raras e baixinhas, pronunciadas com medo de pousar, entristeciam-me, e a sua palidez que os negros cabelos emolduravam, dava-lhe o ar duma criatura que não pertencia a este mundo.

Se eu pudesse cinematografar a vida e a morte de uma flor, cinematografava a sua vida. Não valia nada - o que vale um pássaro, e em questões afectivas, em ternura, tinha a profundidade do mundo -  a do silêncio - a do sonho.

Não sei dizer se existiu, se a criei, e o que na realidade me interessa é o que ela disse à grande nódoa de humidade da parede.

Sei que chorou mas não a ouvi chorar. Ninguém a ouviu, ninguém deu por ela. Passou como uma sombra. Habituou-se. As lágrimas sumiu-as, meteu-as para dentro. A dor aprendeu a contê-la. Habituou-se a queixar-se à grande nódoa de humidade da parede. E o principal para mim foi essa queixa que ninguém ouviu no mundo; foi o que os seus olhos verdes de espanto decifraram naquele arabesco da parede. Podes porventura conceber isto? Uma dor que não deixa vestígio, um sonho ignorado que não deixa vestígio, que passa no mundo e não deixa vestígios - a dor despercebida, as lágrimas contidas que se não chegam a chorar?

Posso dizer que só dei por ela depois de morta. As horas belas perdi-as a sonhar, quando a vida estava a meu lado. Eu não vivi! Só agora é que me lembro dela, como duma tarde que viesse devagarinho na ponta dos pés, e se fixasse num minuto, no silêncio, nas coisas suspensas na luz - nos botões quase a abrir.

Estraguei tudo, estraguei a minha vida e a sua vida.

O dia de hoje não existe para mim: só penso com sofreguidão no dia de amanhã. Ora amanhã é a morte. E sucede também que só dou pelas coisas belas da vida, depois que passaram por mim, e que as não posso ressuscitar. Há na vida um único momento. Um momento que sorri. Que concentra em si todos os momentos. Troquei-o pelo absurdo. Troquei a vida pela morte. Só agora seus olhos verdes de espanto me chamam, seus olhos que exprimem o irreal e o mundo todo, seus olhos cheios de dor represa e de sonho coado por lágrimas....

É que há entre figuras que compõem o meu ser, duas encarniçadas uma contra a outra. Há uma que crê, outra que não crê. Há uma capaz de todas as cobardias, outra capaz de todas as audácias. Há uma pronta para todos os rasgos e outra que a observa e comenta.

Mas há entre as figuras que compõem o meu ser, uma que está calada. É a pior. Olha para mim e basta olhar para mim para que eu estremeça.- Por muito que me acuses, já eu me tenho acusado muito mais!

Olhas-me e eu estremeço. A sofreguidão dos teus olhos, a sofreguidão profunda dos teus olhos, que me reclamam como um abismo de dor e de espanto onde encontro enfim a vida!

Se te quisesse descrever, não te podia descrever. Sei que me pertences e que te pertenço."      

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015
"Há um não sei quê de monstruoso neste mundo, que bebe todas as lágrimas e leva todos os gritos. E não se farta. Há não sei quê que reclama dor."

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

agosto 18, 2016

"A primavera é um fenómeno eléctrico.

Na primeira tentativa da flor há fealdade e ao mesmo tempo candura; depois, da noite para o dia uma gota de tinta como uma gota de leite. Basta que à névoa se misture o sol, para entreabir, ainda informe. Todos os seres, antes de se vestir, são abortos: têm medo de nascer belos.

Às vezes basta um dia. Dum instante para o outro, poeira azul, entontecimento, sonho...

E isto não é só material. Neste mistério há certa dor, certa tontura, há até espanto. É um olhar que se abre para o mundo. Pela emoção a árvore comunica com o universo e manifesta uma vontade que triunfa sobre a dor inconsciente.

Entre a árvore, o céu e a terra há um compromisso de ternura."

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015
"Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a esta criatura de olhos tristes fitos em mim. Para sempre! Até as coisas mais belas se transformam em absurdo e me pesam como chumbo. Pesa-me a tua amizade, pesa-me o teu amor - para sempre.

A pobreza e a humildade não se toleram para sempre."

Raul Brandão (1917) Húmus | Relógio d'Água | 2015

agosto 05, 2016

"15 de Novembro
Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ai acaso num sítio húmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente e de um dia para o outro num palmo de Universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contaminam, mas como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manha anda e desanda, e por mais que se escute, não lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignificância a lei da vida: é a insignificância que governa a vila. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça - Tem paciência - e rodeia, volta atrás, espera ano atrás de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciência... Paciência... Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradável. - Pois sim... pois sim."

Raul Brandão (1917) | Húmus | Relógio d'Água | 2015