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abril 14, 2017

©Leonard Freed | Wall Street |New York City. USA |1956
    
"Numa grande estrada não é raro vermos uma onda, uma onda solitária, onda fora do oceano.
     Não tem utilidade nenhuma, não constitui nenhum jogo.
     É um caso de espontaneidade mágica."

 *
*        *
     "Os Magos amam o escuro. Os principiantes não podem passar sem ele. Exercitam a mão, se assim pode dizer-se, em baús, roupeiros, guarda-fatos, cofres, caves, sótãos, caixas de escada.
     Não há dia em minha casa que não saia do armário qualquer coisa insólita, seja um sapo, um rato, aliás com cheiro a inépcia e que logo ali se esvai sem poder fugir.
     Até enforcados se encontravam, dos falsos claro está, onde nem a corda era verdadeira.
     Quem pode garantir que a gente se habitue com o tempo? Uma apreensão retinha-me sempre por um instante, com a mão indecisa no puxador. 
    Um dia rolou uma cabeça ensanguentada para cima do meu casaco acabado de estrear, sem lhe fazer, aliás, nenhuma nódoa.
     Depois de um instante - infecto - de nunca mais querermos viver outro igual - voltei a fechar a porta.
      Tinha que ser um noviço, este Mago, para não conseguir pôr uma nódoa num casaco tão claro.
    Mas a cabeça, o seu peso, o seu aspecto geral, tinham sido bem imitados. Pavorosamente, agoniado, eu já estava a senti-la a cair-me em cima quando desapareceu."

Henri Michaux (1967) | No País da Magia | Hiena Editora | 1987


abril 06, 2015

"O Azar
     O senhor Henri disse: as maldições são cálculos matemáticos que acertam no futuro e esperam por nós.
     Entretanto, o senhor Henri baixou-se para apertar um sapato e, nesse momento, uma enorme pedra passou por cima da sua cabeça e caiu violentamente no chão.
     ... a minha sorte foi mais uma vez pontual - disse o senhor Henri, depois de se levantar.
     ... ou seja: a minha sorte está sempre sincronizada com o meu azar.
     ... se uma pedra me batesse na cabeça seria azar - disse o senhor Henri.     ... mas felizmente veio a sorte de me ter baixado no momento em que a pedra me queria abrir a cabeça.     ... as pessoas que têm azar não deixam de ter sorte.
     ... o que têm é sorte nos momentos errados - disse.     ... é como se no meio do deserto encontrassem um saco cheio de areia... - disse o senhor Henri." 
Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri, Caminho, 2003
CONTRA!

Hei-de construir-vos uma cidade de farrapos, eu!
Construir-vos-ei sem planta nem cimento
Um edifício que não destruireis,
E que uma espécie de evidência espumante
Há-de sustentar e inchar, há-de gritar-vos à cara,
E à cara gelada de todos os vossos Pártenons, as vossas artes árabes, e os vossos Mings.

Com fumo, com diluição de nevoeiro
E com o som de pele de tambor
Hei-de edificar-vos fortalezas esmagadoras e soberbas,
Fortalezas exclusivamente feitas de redemoinhos e solavancos,
Contra as quais a vossa ordem multimilenária e a vossa geometria
Ruirão em palermices e sofismas e pó de areia sem razão.

Dlão! Dlão! Dlão! Sobre todos vós, dobre de finados aos vivos!
Sim, creio em Deus! Está claro que ele não sabe de nada!
Fé, solas inúteis para quem não progride.
Ó mundo, mundo estrangulado, ventre frio!
Nem sequer símbolo, mas ausência, eu contra, eu contra,
Eu contra e atulho-te de cães esfaimados.
Às toneladas, estão-me a ouvir, às toneladas, hei-de arrancar-vos tudo aquilo que recusaram em gramas.

O veneno da serpente é o seu fiel companheiro,
É fiel e ela dá-lhe o justo valor.
Irmãos, meus irmãos malditos, segui-me com confiança.
Os dentes do lobo não se retraem do lobo
É a carne de carneiro que retrai.

No escuro veremos claro, meus irmãos.
No labirinto acharemos a via recta.
Carcaça, que fazes aqui, marafona, mijona, penico partido?
Como hás-de sentir, moitão rangente, os cordames tensos de quatro mundo!
Como te hei-de esquartejar!

Henri Michaux
Antologia, Relógio D'Água, 1999

abril 01, 2015

[#12] Estou a escrever-te de um país distante

©Henri Cartier-Bresson. FRANCE. Paris. Place de l'Europe. Gare Saint Lazare. 1932

 "Neste país não se dá boa educação aos arrepios. Ignoramos as verdadeiras regras, e quando o facto acontece somos apanhadas de surpresa.
   Claro que sim, que é o Tempo. (Aí passa-se o mesmo?) Teríamos que chegar antes dele; percebes o que eu quero dizer, só um bocadinho antes. Conheces a história da pulga na gaveta? Claro que sim. Que verdadeira, não achas? Não sei o que dizer mais. Quando é que vamos finalmente ver-nos?"
Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 31, 2015

[#11] Estou a escrever-te de um país distante


©Thomas Dworzak. AFGHANISTAN. Kabul. 04/2002. Cemetery on the outskirts of the city

 "Escreve ela ainda:
   "Nem imaginas como há no céu tanta coisa, que só vendo se acredita. Olha, por exemplo, as... mas não vou dizer-te já o nome.
   Embora pareçam pesadas e ocupem quase todo o céu, não têm peso nenhum apesar de tão grandes, do tamanho de um recém-nascido.
   Dá-se-lhe o nome de nuvens.
   É verdade que deitam água, mas sem as apertarmos, nem triturarmos. Tão pouca têm, que seria inútil.
   Mas desde que ocupem lonjuras e mais lonjuras, larguras e mais larguras, fonduras e mais fonduras e lhes dê para fazer de inchadas, com o tempo chegam a deixar cair algumas gotículas de água, sim, de água. E bem molhadas ficamos. Fugimos, furiosas por nos terem apanhado; pois ninguém sabe em que momento vão deixar cair as suas gotas; são dias, às vezes, sem as deixarem cair. E de nada valeria esperarmos em casa."

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 21, 2015

Dia Mundial da Poesia

©raquelsav. Muzeum Kinematografii. Lodz (Polónia) 20 Março 2015



"Quem deixa um rasto, deixa uma ferida."

Henri Michaux, Antologia. Relógio D'Água, 1999

março 15, 2015

[#10] Estou a escrever-te de um país distante

fotograma. "Tempos modernos". Charlie Chaplin

      " "As formigas nunca nos cercaram como agora.", diz a sua carta. Inquietas, de ventre pelo chão, empurram poeiras. Não querem saber de nós.
     Nem uma levanta a cabeça.
     Sociedade mais fechada não existe, apesar de se espalharem constantemente lá fora. Não faz mal, projectos a realizar, preocupações... estão como em sua casa.... seja onde for.
     E até hoje nenhuma olhou para nós. Ainda se arriscava a ser esmagada."

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 14, 2015

[#9] Estou a escrever-te de um país distante


     
©raquelsav
     "Não posso deixar-te com dúvidas, prossegue ela, com falta de confiança. Gostava de falar-te uma vez mais do mar. Mas persiste o embaraço. Os ribeiros avançam: ele é que não. Olha, não te zangues, juro que é verdade, nem pela cabeça me passa deixar-te enganado. É assim, o mar. Por mais agitado que esteja, pára à frente de um pouco de areia. É muito indeciso. Por certo queria avançar, mas na verdade é que não o faz.
     Mais tarde, um dia, talvez ele avance."

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 13, 2015

[#8] Estou a escrever-te de um país distante


©Jean Gaumy. FRANCE. Cordovan lighthouse. January 2013.
Details. Screenshot of digital BW photographs taken with an iPhone.
 Color photographs taken with a digital reflex camera
     "Desde há muito, muito tempo, confia-lhe ela, andamos a debater-nos com o mar.
     É muito raro que azul, suave, ele nos pareça contente. E nem é coisa que dure. Di-lo o seu cheiro, aliás, um cheiro a podre (não fora a sua amargura).
     Eu devia explicar agora o caso das ondas. Incrivelmente complicado, e o mar... Por favor, confia em mim, Alguma vez eu quereria enganar-te? O mar não passa de uma palavra. Não passa de um medo. Existe, juro-te que existe, estamos constantemente a vê-lo.
     Quem? Nós, claro, nós estamos a vê-lo. Chega de muito longe a meter-se connosco e a assustar-nos.
     Quando vieres hás-de vê-lo, também tu, e a ficar muito espantado. "Olha só!, dirás, porque ele assombra.
     Havemos de vê-lo juntos. Julgo que deixarei de ter medo. Ou achas, diz-me lá tu, que isso nunca vai acontecer?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

2+1 ?

©Bruce Davidson. USA. NYC. Irish writer Samuel BECKETT. 1964.


--Poema--
(Henri Michaux)

apreender
ou absolutamente nada apreender ou apreender com louca intensidade

Por falta do principal
apreender desordenadamente, exageradamente,

Atordoar-me

Tornar-me insecto para melhor apreender
patas em gancho para melhor apreender
insecto, aracnídeo, miriápode, ácaro
se for preciso, para melhor apreender.


Herberto Helder, 
Doze nós numa corda (poemas mudados para português por Herberto Helder). Assírio&Alvim, 1997


1+1

"O azar
O senhor Henri disse: as maldições são cálculos matemáticos que acertam no futuro e esperam por nós.
Entretanto, o senhor Henri baixou-se para apertar um sapato e, nesse momento, uma enorme pedra passou por cima da sua cabeça e caiu violentamente no chão.
... a minha sorte foi mais uma vez pontual - disse o senhor Henri, depois de se levantar.
... ou seja: a minha sorte está sempre sincronizada com o meu azar.
... se uma pedra me batesse na cabeça seria azar - disse o senhor Henri.
... mas felizmente veio a sorte de me ter baixado no momento em que a pedra me queria abrir a cabeça.
... as pessoas que têm azar não deixam de ter sorte.
... o que têm é sorte nos momentos errados - disse.
... é como se no meio do deserto encontrassem um saco cheio de areia... - disse o senhor Henri."

Gonçalo M. Tavares O Senhor Henri, Caminho, 2003

março 06, 2015

[#7] Estou a escrever-te de um país distante


©Jean Gaumy.The Natural History Museum
 "Há leões, diz-lhe ela ainda, que nunca abandonam a aldeia e andam a passear sem nenhum pejo. Não apareça quem repare neles, e procedem connosco de igual forma.
     Mas vejam uma rapariga correr-lhes à frente, e nada fazem que desculpe a sua emoção. Qual quê! Vão logo comê-la.
     Por isto não param de passear na aldeia onde nada têm que fazer; sim, que bocejar podiam bocejar tão bem em qualquer outro lado, não é evidente?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)
"A memória
     O senhor Henri estava sentado no banco de jardim a pensar se o seu corpo se levantaria para ir beber um copo de absinto.
    O senhor Henri disse: a minha alma já se levantou.
    O senhor Henri olhou depois para o corpo, tentando localizar o próprio rosto, mas não conseguiu.
     ... há partes do meu corpo que só posso ver com os meus olhos, e há outras que só posso ver com a memória.
     ... é como se a memória tivesse olhos, e mais antigos que os outros dois.
     O senhor Henri depois calou-se.
     E o senhor Henri, depois de um breve silêncio, disse: o certo é que a minha vontade já bebeu um copo de absinto, e eu não.
     ... a minha vontade já se encontra, neste momento, mais bêbada que eu.
     …vou, pois, apanhá-la - disse o senhor Henri." 

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri, Caminho, 2003

março 04, 2015

Henri Michaux

©Henri Cartier-Bresson FRANCE. Paris. 6th arrondissement. Rue Visconti. 1954.
Poet, writer and painter Henri MICHAUX (center) exposes his drawings in the Drouin gallery.
Wearing a hat- Henri PARISOT, translator and bookseller
"Henri Michaux (França, 1899-1984)

     Era um homem que tinha um apetite de vencedor mas um número de moedas de vencido. Em frente ao restaurante caro sacou da imaginação e contou uma história ao empregado que lhe havia apresentado a conta obtusa. Era uma vez um homem que contava histórias para não pagar a conta de um restaurante rico, e o empregado encantado com a história deixou-o sair sem pagar. Era esta a história. Henri olhou para o empregado para verificar se ele tinha gostado, e mais do isso, compreendido. O empregado disse: em dólares, por favor."

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca, Campo das Letras, 2006

[#6] Estou a escrever-te de um país distante

©Josef Koudelka. ITALY. 2006
     "Aqui vivemos todas de nó na garganta. Sabes tu que, apesar de muito jovem, ainda fui mais jovem noutros tempos, e dá-se o mesmo com as minhas companheiras. O que quer isto dizer? Qualquer coisa encobrirá, com certeza horrível.
     E no tempo, como te disse, em que ainda éramos mais jovens, sentíamos medo. Houve quem se aproveitasse da nossa confusão. E nos dissesse: "Pronto, vamos enterrar-vos. Chegou o momento". Pensávamos, de facto, que nessa mesma noite podiam enterrar-nos, se fosse chegado o momento de fazê-lo.
     E não se ousava correr muito: ofegantes, no final de uma carreira, chegarmos ao pé da cova já aberta e nem tempo sobrar para uma palavra, sem nenhum fôlego.
     Diz-me: que segredo existe, na verdade, a tal respeito?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

março 01, 2015

[#5] Estou a escrever-te de um país distante


©Stuart Franklin USA. Yellowstone. 1999. 
Lodgepole pines after the 1988 fires.
 "Estou a escrever-te do fim do mundo. Tens de sabê-lo. É vulgar as árvores estremecerem. Apanham-se as folhas. Com tantas nervuras que nem se imagina. Mas para quê? Já não têm nada a ver com a sua árvore, e por isso dispersamos, contrariadas.
     A vida na terra não poderia prosseguir sem vento? Ou tem tudo sempre, sempre que tremer?
     Também há movimentos subterrâneos, e em casa é como se viessem cóleras ter connosco, como se austeros seres viessem arrancar-nos confissões.
     Nada vemos, do que importa tão pouco ver-se. Nada, e no entanto trememos. Porquê?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 28, 2015

[#4] Estou a escrever-te de um país distante

 ©Josef Koudelka. ITALY. 2005


    "Ainda te acrescento uma palavra, ou melhor, pergunta.
     No teu país a água também corre? (não me lembra se o disseste alguma vez), e se é mesmo água, também arrepia.
     E eu? Gosto dela? Não sei. Mergulhadas sentimo-nos tão sós, quando está fria. Mas é outro o caso se está quente. E então? O que decidir? O que decidem aí, diz-me lá tu, se falam dela despidos de artifícios, de coração na boca?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 27, 2015

[#3] Estou a escrever-te de um país distante

©Josef Koudelka. CZECHOSLOVAKIA. 1962
     "Temos aqui uma aurora parda, diz-lhe ela ainda. Mas nem sempre foi assim. Não sabemos quem culpar.
     De noite o gado dá mugidos fortes, que ao terminarem se arrastam por um som de flauta. Sentimos pena, mas que fazer?
     A toda a nossa volta há um cheiro a eucalipto: benesse, calma, mas não sabe defender de tudo, ou pensas que sim, que ele sabe realmente defender de tudo?"

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 26, 2015

[#2] Estou a escrever-te de um país distante

©Josef Koudelka.USA. California. 2000.
Death Valley National Park
     "Ao andarmos pelo campo, confia-lhe ela ainda, pode acontecer que se encontrem formidáveis massas no caminho. São montanhas e cedo ou tarde é preciso cair de joelhos. De nada vale resistir, não se poderia avançar mais, mesmo decididas a magoar-nos.
     Não digo para ferir. Na verdade, quisesse eu ferir e outras coisas podia dizer."

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)

fevereiro 25, 2015

[#1] Estou a escrever-te de um país distante

©Henri Cartier-Bresson.INDIA. Kashmir. Srinagar. 1948.
Muslim women on the slopes of Hari Parbal Hill, praying toward the sun rising behind the Himalayas
   
  "Só temos aqui, diz ela, um sol por mês, e por pouco tempo. Dias antes já se esfregam os olhos. Mas em vão. Tempo inexorável. Só quando lhe dá o sol aparece.
     Depois tem-se um mundo de coisas a fazer, enquanto há claridade, e de tal forma que sobra pouco tempo para se reparar em nós.
     O que nos contraria é ter de trabalhar à noite, e trabalhamos: há sempre anões a nascer".

Henri Michaux, Estou a escrever-te de um país distante, Hiena Editora, 1986
(tradução de Aníbal Fernandes)