março 06, 2015

"A memória
     O senhor Henri estava sentado no banco de jardim a pensar se o seu corpo se levantaria para ir beber um copo de absinto.
    O senhor Henri disse: a minha alma já se levantou.
    O senhor Henri olhou depois para o corpo, tentando localizar o próprio rosto, mas não conseguiu.
     ... há partes do meu corpo que só posso ver com os meus olhos, e há outras que só posso ver com a memória.
     ... é como se a memória tivesse olhos, e mais antigos que os outros dois.
     O senhor Henri depois calou-se.
     E o senhor Henri, depois de um breve silêncio, disse: o certo é que a minha vontade já bebeu um copo de absinto, e eu não.
     ... a minha vontade já se encontra, neste momento, mais bêbada que eu.
     …vou, pois, apanhá-la - disse o senhor Henri." 

Gonçalo M. Tavares, O Senhor Henri, Caminho, 2003