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fevereiro 16, 2015

"Margarida — Muitas vezes me digo: sei o que é ser português. Tenho a impressão de que reconheço um português em qualquer lado. Mas tenho muitas dúvidas. Será que sei? Onde ancoro a minha identidade é nessa coisa da procura.

Margarida — A consciência de não pertença sempre me perseguiu. E uma certa nostalgia. Comecei a ter uma consciência forte disso, não exactamente nos temas dos filmes, mas na posição em que estou a olhar para as coisas. Sentindo-me sempre um pouco de fora. Nos documentários e na ficção. Na ficção, sem querer, os personagens que crio são todos assim. São pessoas que andam à procura de alguma coisa. Ou que estão completamente perdidos num território. Muitas vezes rejeitados por um território interior e exterior. Acabam todos, também, por ter um lado etéreo. Não consigo dar uma consistência muito realista aos personagens — porque não me interessa.

Margarida — O filme é trespassado por essa ideia da não-comunicação, da dificuldade de os vários mundos se encontrarem. Isso passa-se entre os negros e os brancos, entre a mãe e a filha. Há uma enorme incompreensão e uma dificuldade em juntar coisas que não se podem juntar. Há coisas que nasceram de um tal absurdo que não se podem juntar. Nem vale a pena lutar. Não se vai reparar o que é irreparável.

(...)como é que se vive no absurdo, no absurdo que resulta do absurdo?
Margarida — É difícil, mas acho que todos vivemos assim. Temos sempre perguntas a que não conseguimos responder. A única coisa é que conseguimos disfarçar. Arranjar um outro invólucro.


(...)

No meio de tudo o que corre mal, há o milagre. 
O milagre de termos vontade de viver o dia seguinte, de nos encantarmos.
Margarida — Há uma certa luz no fim do filme. Disseram-me que é deprimente 

acabar um filme com uma cena em que enterram uma piscina.
É uma piscina de um hotel que dizem estar assombrada. Então, 
cobrem-na de areia.
Margarida — É uma forma de enterrar simbolicamente o passado.
Beatriz — Esse é que é o grande milagre. Fazer um “Querido, mudei a piscina”, tapar 
pequenos buracos, a plástica, é a grande mentira. O final do filme é muito mais redentor
 por ser tão honesto. Na vida tapamos, escondemos os nossos tiros. Os tiros da parede da 
piscina, os nossos buracos, feridas. E vivemos com aquilo. Ou reinventamos aquele espaço 
para ser outra coisa. [Enterrar a piscina] é reinventar aquele espaço para ser outra coisa. 
Não é fingir que não aconteceu nada. É ao contrário. É reconhecer que aquele sítio não 
pode voltar a ser o que era.
Margarida — É a mesma coisa que ter a coragem de deitar abaixo o que já não nos serve. 
Mas há um pormenor: o último plano do filme é a actriz sul-africana, a Susan, a dizer-te adeus.
Beatriz — É um modo de dizer: até à vista. É a violência, a crueldade de constatar que aconteça 
o que acontecer, de facto, a vida continua. E esta violência, num filme da Margarida, é dita 
como se não fosse nada.
Margarida — A mãe continua a ver televisão [depois da conversa mais difícil que têm].
Beatriz — Vê televisão. Não desvia os olhos. Esta subtileza, esta forma de violência...
É uma violência surda.
Margarida — Só me interesso por isso. Só consigo interessar-me por esse eco.
Beatriz — É a Margarida a dizer-nos: caia o mundo, conte aqui a história mais desgraçada, 
e a vida segue. No filme, a Margarida desafia o tempo de um modo que a vida não permite — 
na extensão do luto. Os vários lutos. O luto da filha, o luto da nação, o luto da infância...
Margarida — O luto de não pertencer.
Beatriz — Desafia a vida — para que ela pare.
(...)

Margarida — O que se passa numa relação mãe-filha... Nenhuma mãe faz nada bem, tudo bem.
Beatriz — Os filhos querem que elas sejam mães e as mães querem continuar a ser pessoas.
As mães são mais do que mães: são pessoas.
Margarida — Esta relação funciona como uma metáfora das questões relacionais.
Nunca se consegue preencher aquilo que os outros querem. É impossível!
E tem de se viver com isso.
(...)
Margarida — É a sobrevivência. O que o Sérgio diz: “Sabes que quando a Yvone morreu,
eu atravessava um vale. E ia tão focado na minha sobrevivência que não senti um sinal,
nada que me indicasse que ela estava a morrer. A vida é muito estranha, não é?”
O que é estranho é que todos vivemos com esta magia da vida, com aquilo que é criado
pelo amor, pela amizade, mas no momento em que o outro desaparece... Essa ilusão
[de proximidade, de sentirmos o outro dentro de nós] não existe. Estamos fechados dentro
de nós e não vamos sentir nenhum sinal. Mas não quer dizer que não seja isso que nos faz viver.
Beatriz — Perguntava se o amadurecimento corresponde à aceitação do desencanto. Acho que
 não. O amadurecimento é perceber que não somos omnipotentes e que os verdadeiros heróis
 são aqueles que não são mitificados. São aqueles que são heróis e amados por serem como
são. Uma coisa é mitificar as pessoas, outra é aceitar a vida como ela é. Absurda. Sem lógica.
 Não ficcionada."
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/falar-de-um-filme-para-falar-da-vida-1686008