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dezembro 31, 2019

raquelsav 2014
"Windisch vai empurrando a bicicleta. Olha para a lua. O guarda-noctuno diz em voz baixa, mastigando: ‹‹o homem é um grande faisão sobre a terra.›› Windisch levanta o saco e coloca-o na bicicleta. ‹‹o homem é forte››, diz ele, ‹‹mais forte que as bestas.››
Herta Müller | O homem é um grande faisão sobre a terra | 1993 | Cotovia

agosto 27, 2014

Herta Müller

©Josef Koudelka - Romania, Constanta. 1994.
Location shooting of the film 'Ulysse's Gaze', directed by Theo Angelopoulos
      "Estávamos na plataforma, ela que queria ficar mais três semanas e eu que tinha de querer que ela desaparecesse imediatamente. Não houve despedidas. Depois o comboio partiu e lá dentro como cá fora não houve mãos a acenar.
     Os carris estavam vazios, as minhas pernas mais fracas que dois fios. Andei metade da noite a percorrer o caminho da estação para casa. Não queria chegar jamais. Nunca mais consegui adormecer de noite.
     Queria que o amor voltasse a crescer como a erva cortada. Que ele cresça de modo diverso, como os dentes nas crianças, como o cabelo, como as unhas. Que ele cresça como queira. Assustava-me a frialdade do lençol e depois o calor que aparecia sempre que eu estava deitada.
     Quando, meio ano depois do seu regresso, Tereza morreu, eu quis desfazer-me da minha memória, mas dá-la a quem. A última carta de Tereza chegou depois da sua morte:
     Já só consigo respirar como os vegetais no quintal. Tenho uma saudade física de ti.
     O amor por Tereza voltou a crescer. Obriguei-o a isso e tive de precaver-me. Precaver-me de Tereza e de mim, como eu nos conhecia antes da visita. Tive de amarrar as mãos a mim própria. Elas queriam escrever a Tereza, dizer-lhe que eu ainda nos conhecia. Que a frialdade que tenho em mim revolve um amor contra a razão."

"Porquê e quando e como é que o amor amarrado se mistura com os esquadrões de assassínio. Queria gritar todas as pragas que não domino.

Que Deus castigue
Quem ama e parte
Que Deus o castigue
Com o passo do escaravelho
O zumbido do vento
O pó da terra.

Gritar pragas, mas a que ouvido.
Hoje é a erva que me escuta quando falo de amor. A mim parece-me que esta palavra não é honesta consigo mesma."

     "Também tinha dito a Kurt: Agarra-te a Tereza. Uma amizade não é um casaco que possa herdar de ti, opinou ele. Posso enfiá-la. Vista de fora, até poderia servir, mas não aqueceria por dentro.
     Tudo o que se dizia tornava-se definitivo. Espezinhar tanto com as palavras na boca como com os pés na erva, eram assim todas as despedidas.
     Quem ama e parte, esse éramos nós próprios. Tínhamos levado a maldição da cantiga ao seu máximo expoente:

Que Deus castigue
Quem ama e parte
Que Deus o castigue
Com o passo do escaravelho
O zumbido do vento
O pó da terra."

     "A morte de Tereza doeu-me como se eu tivesse duas cabeças a embater uma com a outra. Numa havia o amor ceifado, na outra, o ódio. Queria que o amor voltasse a crescer. Ele cresceu como erva e palha entrelaçadas e era a afirmação mais fria na minha testa. Era a minha planta mais estúpida"



Herta Müller,
A terra das Ameixas verdes
2009


agosto 19, 2014

©Josef Koudelka ROMANIA. Bukovina. 2001.
PLAY Sophie Hunger - Shape


"O relógio tiquetaqueava até no espelho. O pescoço de Tereza era demasiado comprido, os olhos, demasiado pequenos, as omoplatas, demasiado salientes, os dedos demasiado grossos, o traseiro, demasiado chato, as pernas, demasiado tortas. Tudo o que eu via em Tereza devolvia-me hediondamente o olhar no tiquetaque do relógio. Desde que me fora proibido afagar as borlas das pantufas do pai que nenhum outro relógio tiquetaqueara assim tão alto.
    Porias este vestido no Inverno, perguntou Tereza. O vestido não tinha cinto. Eu disse, sim, e vi que Tereza era feia, porque o tiquetaque do relógio a despedaçava. Logo depois, sem espelho, a feiura vulgar de Tereza tornou-se invulgar. Mais bela que em mulheres que eram imediatamente belas."

Herta Müller
A terra das Ameixas verdes

agosto 14, 2014

Herta Müller




"Não sabia o que são quatro anos. Se os tinha pendurados em mim ou na roupa. O último ano estava pendurado no armário. Tinha-me maquilhado todas as manhãs no último ano. Maquilhado tanto mais quanto menos queria viver."
©Sergio Larrian. CHILE. Valparaiso. Passage Bavestrello. 1952.
Herta Müller,
A terra das Ameixas verdes

agosto 03, 2014

Herta Müller


©Irving Penn
"Lola era do Sul do país e via-se-lhe no rosto uma terra que permanecera pobre. Não sei onde, talvez nos ossos da face ou no redor da boca ou mesmo no meio dos olhos. É difícil precisar uma coisa destas, quer se trate de uma terra ou de um rosto. Todas as regiões do país tinham permanecido pobres, também em todos os rostos. Porém, a terra de Lola, e isso era visível nos ossos da face ou em redor da boca ou mesmo no meio dos olhos, era talvez mais pobre. Mais terra que paisagem.
(...)
Mais tarde, li no caderno de Lola: o que se leva da terra, leva-se no rosto."
Herta Müller
A terra das Ameixas verdes

julho 30, 2014

Herta Müller

"Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos.
Já estávamos há tempo de mais sentados no chão diante das fotografias. Tinha as pernas dormentes de estar sentada.
Espezinhamos tanto com as palavras na boca como com os pés na erva. Mas com o silêncio também."
Herta Müller
Na terra das Ameixas verdes


junho 18, 2014

Herta Müller

   "É uma noite no café, que em plena cidade de se apodera da hora, assim como aqui e ali, como por acaso, uma sombra de dimensões humanas se apodera da sua vida, pondo-lhe fim no rio. Está na cidade um inverno que é lento, senil, que inocula nas pessoas o seu frio. Está ali na cidade um inverno em que até a boca arrefece, em que as mãos, ausentes, o mesmo que agarram deixam cair, porque as pontas dos dedos ficam nas mãos como couro. Está ali na cidade um inverno em que a água nem sequer se resfria em gelo, em que os velhos carregam as vidas passadas como sobretudos. Um inverno em que os novos têm de odiar-se como à infelicidade, quando a suspeita de felicidade lhe sobrevém entre as têmporas. E, contudo, buscam a sua vida, de pupilas nuas. Ronda por ali no rio um inverno onde, em vez de água, só o riso gela. Onde balbuciar é já falar e meia palavra é já um grito. Onde cada pergunta se extingue na garganta e, muda, cada vez mais muda, não pára de bater com a língua contra os dentes." (p. 183)

   "Lá fora, quando se ergue o queixo debaixo da árvore e se olha para o alto, a bola verde amolgada na forquilha dos ramos é tão pequena e escura que parece lá em cima a réplica do olho. Passam sobretudos em lugar de pessoas, é novembro que caminha dentro dos sobretudos. Na segunda semana, ele é tão melancólico e velho que já com a manhã chega o entardecer." (p. 188)


Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)

junho 17, 2014

Herta Müller

     "O negro no olho do ditador é do tamanho da unha no polegar de Adina, quando o polegar se curva sem nada agarrar. O negro do olho do ditador vê todos os dias o país profundo a partir do jornal." (p. 28)  

   "À janela da cozinha está a lua, tão inchada que não pode demorar-se mais. Está carcomida pelo alvorecer. São seis horas e a lua passou a noite em claro, ainda tem três dedos amarelos, e um é cinzento e segura-lhe a testa. Os autocarros rumorejam matutinos, ou então é lá em cima na fronteira da noite, onde a lua, quando não está redonda, fica dependurada depois de deixar a cidade. Os cães uivam como se a escuridão tivesse uma enorme pele e o vazio das ruas, no crânio, um cérebro tranquilo. Como de os cães da noite temessem o dia em que a fome que busca se encontra com a fome que vadia, quando as pessoas por eles passam. Quando o bocejo se encontra com o bocejo e, na mesma exalação da boca, a fala com o latido.  
       Os colãs cheiram a suor de inverno. Adina enfia-os como um sacolejar de comboio sobre as pernas nuas, enfia o casaco comprido sobre a camisa de noite. No casaco pendem ainda os casaquinhos negros do viaduto e os casacões verdes do autocarro. Nos botões do casaco, ainda presente a pequena estação e o negro do olho. No bolso do casaco está ainda dinheiro da viagem e a lanterna de bolso. A chave está em cima da mesa da cozinha. Os sapatos ainda têm colada a porcaria do pátio da caserna. Ela enfia-se nos sapatos." (p. 161-162)

     "Adina veste os colãs, as suas pernas não estão dentro dos colãs. E veste o casaco, os seus braços não estão dentro do casaco. Só a camisa de noite lhe sai por baixo do casaco comprido. Adina entala a camisa de noite nos colãs. As chaves, o dinheiro, a lanterna estão no bolso do casaco. Na cozinha, o sol repousa sobre a mesa, debaixo da mesa repousa a porcaria dos sapatos, na parede o relógio faz tiquetaque e escuta-se a si mesmo. E quase meio-dia. Adina enfia-se nos sapatos, os seus dedos dos pés não estão dentro dos sapatos, estão dentro do relógio. Adina sai da cozinha em bicos de pés, antes que os dois ponteiros se encontrem no cocuruto do dia, onde são doze horas. A porta abre-se, a porta bate ao fechar-se.

      A respiração de Adina caminha à sua frente, ela estende a mão para a agarrar, já não consegue apanhá-la." (p.166)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 

junho 13, 2014

Herta Müller

"Ao oitavo dia, diz o porteiro, ainda sobrou a Deus, de Adão e Eva, um tufo de cabelo. A partir dele fez as aves. E ao nono dia, perante o vazio do mundo, Deus deu um arroto. A partir dele fez a cerveja." 

"São os meses em que as mulheres riem todos os dias à mesma hora. Um riso insonso de inverno, tirado de memória, porque o vapor se mantém cego até à primavera."

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 

maio 29, 2014

Herta Müller

"Aí, as crianças arrancam da terra os talos de erva com caules leitosos e sugam-nos como num jogo. E o que está em jogo é a fome. O crescimento dos pulmões para, o leite das ervas alimenta os dedos emporcalhados, as fiadas de verrugas. Não os dentes de leite, esses caem na mão ao falar. As crianças atiram-nos por cima dos ombros para trás das costas, hoje um, amanhã outro, para o meio da erva. Enquanto voa no ar, gritam:
   Rato, rato, traz-me um dente novo,
   que eu dou-te o velho.
   Só quando o dente se perdeu na erva em parte incerta, eles olham para trás, e chamam-lhe infância.
   O rato fica com os dentes de leite e cobre de azulejos brancos os seus corredores por debaixo do prédio. Dentes novos ele não traz." (p.50)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 
"Paul escreveu um papel com a dieta recomendada para um cigano velho que teve alta do hospital. O homem não sabia ler. Paul leu-lhe o que estava escrito no papel. O homem não sabia ler. Paul leu-lhe o que estava escrito no papel. Estava também escrito CARNE DE COELHO. Não posso pegar nesse papel, disse o homem, o senhor é um cavalheiro, tem de me escrever outro papel. Paul riscou CARNE DE COELHO com um só traço, o homem abanou a cabeça. Isso continua aí escrito, o senhor é médico, mas não é cavalheiro. O senhor não compreendeu como dentro de si bate o coração. O coração da terra bate dentro do coelho, meu cavalheiro, é por isso que somos ciganos, por compreendemos, por isso temos de correr mundo" (pp. 39-40)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)

maio 27, 2014

Herta Müller


"O oficial despe as calças do uniforme e entrega-as à mulher, ela dobra-as e pendura-as no braço. Ele despe as cuecas e senta-se de pernas escarranchadas por cima da bacia, deixa-as cair sobre os joelhos e fica a olhar para os ladrilhos azuis por cima do espelho. O membro suspenso mergulha na água. Se os testículos se afundam, a mulher diz: está bem. Se os testículos boiam à superfície, ela chora e grita, esvaziaste-os a foder, até as tuas botas estão murchas. O oficial inclina a cabeça, entre os joelhos, observa os testículos a boiar, eu juro, diz ele, ó querida, eu juro." (p. 33-34)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)

maio 19, 2014

Herta Müller

"Quando Clara pragueja, todas as coisas têm mãe". (p. 12)

"A criança invadiu com seu riso a última frase e o silêncio que se lhe seguiu. E os seus dentes pareciam gravilha, metade deles enegrecidos e os outros lisos e brancos. No rosto da criança lia-se uma idade que a voz de criança não suportava. O rosto cheirava a fruta estragada." (p. 14)

"Atrás de uma mulher caminha uma sombra, a mulher é pequena e inclinada, a sombra mantém as distâncias. A mulher atravessa a relva e senta-se num banco junto do prédio.
A mulher está sentada, a sombra fica de pé. Não pertence à mulher, como a sombra da parede não pertence à parede. As sombras abandonaram à sorte os objectos a que pertencem. Pertencem somente àquele fim de tarde, que já passou." (p.24)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)