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dezembro 25, 2014

©Herbert List - GREAT-BRITAIN. London. 1936. Ashtray

PLAY Ravel Piano Concerto in G

"Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir- nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e o fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio."
Clarice Lispector, A paixão segundo G.H.

dezembro 23, 2014

Walt Whitman

©Daniel_Blaufuks_Mão com espelho, da série "O ofício de viver"*, 2010
48
Já disse que a alma não é mais do que o corpo,
E disse que o corpo não é mais do que a alma,
E nada, nem Deus, é maior para uma pessoa do que ela própria,
E quem caminha duzentos metros sem amar caminha amortalhado para o seu próprio funeral,
E eu ou tu que não possuímos um centavo podemos comprar o melhor que a Terra contém,
E olhar com um só olho ou mostrar um feijão na sua vagem desconcerta a aprendizagem de todos os tempos,
E não há ofício nem emprego em que um jovem não possa converter-se em herói,
E não há delicado objeto que não possa servir de eixo às rodas do universo,
E digo a todos os homens e mulheres: que a tua alma permaneça tranquila e serena ante um milhão de universos.
E digo à humanidade: não sintas curiosidade por Deus,
Porque eu que tenho curiosidade por tudo não sinto curiosidade por Deus,
(Não há palavras que possam definir a paz que sinto em relação a Deus e à morte.)Escuto e contemplo Deus em cada objecto, ainda que não O entenda minimamente.Nem entenda que possa existir alguém mais maravilhoso do que eu próprio.

Por que é que desejaria ver Deus melhor do que este dia?
Vejo algo de Deus em cada uma das vinte e quatro horas, e vejo-o em cada momento que passa.
Vejo Deus no rosto de homens e mulheres e no meu próprio rosto ao espelho.
Encontro cartas de Deus espalhadas pela rua, todas assinadas com o seu nome,
E deixo-as onde estão pois sei que vá para onde for,
Chegarão sempre outras pontualmente.

Walt Whitman, Canto de mim mesmo. BI.045

* inspirado pelos diários de Cesare Pavese 

novembro 30, 2014

Wittgenstein


"Este livro será talvez apenas compreendido por alguém que tenha uma vez ele próprio já pensado os pensamentos que são nele expressos- ou pelo menos pensamentos semelhantes. Não é, pois, um livro de texto. O seu fim seria alcançado se desse prazer a quem o lesse compreendendo.
(...). Todo o sentido do livro podia ser resumido nas seguintes palavras: o que é de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo que não se pode falar, guarda-se em silêncio."
Tratactus Lógico-Philosophicus
Prólogo
Ludwig Wittgenstein

setembro 08, 2014

Roberto Juarroz

©Harry Gruyaert Mali. Town of Gao. 1988. Terrace of a local hotel.

Há palavras que não dizemos
e que pomos sem dizê-las nas coisas.

E as coisas guardam-nas,
e um dia respondem-nos com elas
e salvam-nos o mundo,
como um amor secreto
em cujos dois extremos
há uma só entrada.

Não haverá uma palavra
dessas que não dizemos
que tenhamos colocado
sem querer no nada?

Roberto Juarroz

julho 30, 2014

Herta Müller

"Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar, falamos e tornamo-nos ridículos.
Já estávamos há tempo de mais sentados no chão diante das fotografias. Tinha as pernas dormentes de estar sentada.
Espezinhamos tanto com as palavras na boca como com os pés na erva. Mas com o silêncio também."
Herta Müller
Na terra das Ameixas verdes


julho 17, 2014

Bioy Casares

"Disse para si próprio que imediatamente ao chegar à ilha começaria o estudo. Logo ponderou que estava muito cansado, que não seria capaz de se concentrar, que adormeceria sobre as páginas. O mais ajuizado era pôr o despertador para as três e dormir um soninho - isso sim, bem cómodo no catre - e depois, com a cabeça fresca, empreender a leitura. Melancolicamente, imaginou a campainhada, à hora destemperada. "Também não é caso para desanimar", pensou, "já que na ilha não me restará outro recurso a não ser estudar. Quando me apresentar a exame, estarei feito um campeão."
Da forma do mundo,
Bioy Casares

julho 16, 2014

Albert Camus

"Balducci fez o gesto de passar a lâmina no pescoço. O árabe, cuja atenção fora atraída para a conversa, observava-o inquieto, e Daru sentiu uma cólera súbita contra esse homem, contra todos os homens e sua estúpida maldade, contra os seus ódios incansáveis e inextinguível sede de sangue.
Mas a panela chiava no fogão. Tornou a servir Balducci, hesitou, e fez o mesmo com o árabe, que pela segunda vez bebeu avidamente o chá".

O Exílio e o Reino (O hóspede)
Albert Camus

Albert Camus

"O Sol já atingiu metade do céu. Pelas fendas da rocha vejo o buraco que ele faz no metal incandescente do céu, entornando rios de chamas sobre o deserto incolor. No caminho, que se desenrola à minha frente, nada até ao horizonte, nem um grão de pó. Atrás de mim andarão já a procurar-me, ou talvez ainda não, era só de tarde que abriam a porta para eu sair um bocadinho, depois de haver todo o dia arranjado a casa do feitiço, renovando as oferendas. À noite começava a cerimónia. Às vezes batiam-me, outras não, mas eu servia sempre o ídolo, esse ídolo cuja lembrança tenho gravada a fogo, jamais um deus me possuiu tanto. Concedi-lhe os meus dias e as minhas noites. Devi-lhe a dor e a ausência da dor e até o desejo - à força de assistir diariamente àquele acto impessoal e perverso, mas sem o ver, pois tinha de olhar para a parede, sob pena de me espancarem. Mas, com a cara unida ao sal, dominado pelas sombras que se agitavam em volta, eu escutava um grito e, de garganta seca, sentia o desejo queimar-me, um desejo sem sexo que me comprimia as fontes e o ventre. Assim os dias se sucederam aos dias, mal os distinguia uns dos outros, tal como se eles se liquefizessem no calor tórrido da reverberação insidiosa das paredes de sal. O tempo tornara-se uma articulação informe em que rebentavam, com intervalos regulares, os gritos de dor e de posse; tempo sem idade, sobre o qual reinava o feitiço como o sol feroz sobre este abrigo de pedras. E agora, como então, eu deploro a desgraça e o desejo, queimado por uma esperança malévola. Quero atrair, beijo o cano da espingarda e sinto a sua alma lá dentro... a sua alma, porque só as espingardas têm  alma... No dia em que me cortaram a língua, aprendi a adorar a alma imortal do ódio!"
O Exílio e o Reino (O renegado ou um espírito confuso)
Albert Camus

julho 01, 2014

Cervantes

   "Perguntou se trazia dinheiros. Respondeu-lhe D. Quixote que nem branca, porque nunca tinha lido nas histórias dos cavaleiros andantes que nenhum os tivesse trazido.
   A isto disse o estalajadeiro que se enganava; que posto nas histórias se não achasse tal menção, por terem entendido os autores delas não ser necessário especificar uma coisa tão clara e indispensável, como eram o dinheiro e as camisas lavadas, nem por isso acreditar que não trouxessem tal; e assim tivesse por certo e averiguado, que todos os cavaleiros andantes, de que tantos livros andam cheios e rasos, levavam em apetrechadas bolsas para o que desse e viesse, e igualmente levavam camisas, e uma caixinha pequena cheia de ungentos, para se guarecerem das feridas que apanhassem, porque nem sempre se lhes depararia quem os curasse nos campos e desertos onde combatessem, e de onde saíssem escalavrados;"
D. Quixote de la Mancha


junho 24, 2014

Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont)

"Nem toda a água do mar chegaria para lavar uma nódoa de sangue intelectual."
Poema I
Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont)

Shakespeare


Hamlet: Que obra-prima é o homem! Quão nobre pela sua razão! Quão infinito nas suas faculdades! Na sua forma e movimento quanto é expressivo e maravilhoso! Um anjo em acção! Na sua inteligência é como um Deus! A maravilha do mundo! O arquétipo dos animais! E, contudo, para mim, o que é esta quinta essência do pó? Não me encanta o homem, nem tão-pouco a mulher(...)

(...)


Rei: Então Hamlet, onde está Polónio?
Hamlet: A jantar.
Rei: A jantar! Onde?
Hamlet: Não onde come, mas sim onde é comido. Uma certa assembleia de vermes políticos está agora a devorá-lo. O verme é o único imperador da boa alimentação: nós engordamos todos os restantes animais para nos engordarem a nós e engordamo-nos a nós próprios para os vermes. O gordo rei e o esquálido mendigo não são mais que ementas distintas, dois pratos, embora de uma mesa só. E é tudo.
Rei: Meu Deus, meu Deus!
Hamlet: Um homem pode pescar com o verme que comeu a carne do rei; e comer o peixe que se alimentou daquele verme.
Rei: E que queres dizer com isso?
Hamlet: Nada, a não ser mostrar-vos que um rei pode viajar nas tripas de um mendigo.

ShakespeareHamlet

junho 23, 2014

Samuel Beckett

Hamm: A natureza esqueceu-se de nós.
Clov: Já não há natureza.
Hamm; Não há natureza! Que exagero.
Clov: Nos arredores.
Hamm: Mas nós respiramos, mudamos! Cai-nos o cabelo, os dentes! A nossa frescura! Os nossos ideais!
Clov: Então não se esqueceu de nós.
Hamm: Mas tu dizes que não existe.
Clov (tristemente): Nunca ninguém no mundo pensou de uma maneira tão retorcida como nós.
Hamm: Faz-se o que se pode.
Clov: Estamos enganados.
pausa
Hamm: Julgas-te alguém, hã?
Clov: Naturalmente.

_________

Nell: Vou deixar-te.
Nagg: Podes coçar-me primeiro?

_________



Samuel Beckett, Fim de Partida

junho 21, 2014

Nuno Higino

Desenho sobre o espaço
um lugar sem disfarce:
a elipse do vento, por exemplo.
E aí habito entre paredes brancas
e breves muros lisos.
E saio com o vento
e em suas saias me abandono.
E porque o vento nunca tem regresso
habito com ele o tempo sempre novo
aliso com ele os espaços sempre novos
com ele conquisto distâncias e perigo.
Cada lugar é a minha casa
e a minha casa é sempre nova
branca branca breve lisa.

Nuno Higino, No silêncio da terra, Campo das letras, 2000

junho 18, 2014

Harold Bloom

"Emmerson e o antigo gnosticismo concordam que aquilo que é melhor e mais antigo em cada um de nós não faz parte da Criação, da Natureza ou do Não-Eu. Cada um de nós, presume-se, é capaz de identificar o que tem de melhor em si, mas como é que encontramos o mais antigo?"

"Penso que é impossível uma definição materialista do génio, e é por isso que a ideia de génio está tão desacreditada numa época como a nossa, onde dominam as ideologias materialistas. O génio invoca necessariamente a transcendência e o extraordinário, porque tem plena consciência deles. A consciência é que define o génio: Shakespeare, como o seu Hamlet, excede-nos em consciência, vai para além do nível mais alto de consciência que acederíamos sem ele."

"A pergunta que precisamos de colocar a qualquer escritor será a seguinte: Ela ou ele aumentam a nossa consciência? E como é que o fazem? Acho que este teste é grosseiro, mas eficaz: para além de me ter divertido a minha percepção intensificou-se? A minha consciência alargou-se e foi esclarecida? Se não, então deparei-me com talento e não com o génio. Aquilo que há de melhor e mais antigo em mim não foi activado"

Harold Bloom, "Génio", 2014 (Tradução do original de 2002)

Harold Bloom

"Há evidências de vacilação entre os que descartam o génio como sendo meramente um fetiche do século XVIII. O pensamento em grupo é a praga da nossa Era da Informação e é ainda mais pernicioso nas nossas instituições académicas obsoletas, cujo longo suicídio continua desde 1967. O estudo da mediocridade, seja qual for a sua origem, gera mediocridade. Thomas Mann, descendente de fabricantes de móveis, profetizou que a sua tetralogia de José perduraria porque era bem-feita. Nós não aceitamos mesas e cadeiras que tenham pernas a cair, independentemente de quem a fez, mas instamos os jovens a estudar textos medíocres, sem pernas que os sustenham" (Prefácio)

"Qual a relação entre o génio recente e a autoridade estabelecida? Neste momento, no início do século XXI, eu diria: "Pois, nenhuma, absolutamente nenhuma." As nossas confusões sobre padrões canónicos para o génio transformaram-se em confusões institucionalizadas, de modo que todos os nossos julgamentos acerca da diferença entre o talento e o génio estão à mercê dos meios de comunicação e obedecem às políticas culturais e aos seus caprichos".


"O génio literário é difícil de definir e depende de uma leitura profunda para a sua verificação. O leitor aprende a identificar-se com o que sente como uma grandeza que se pode juntar ao eu, sem violar a sua integridade. Talvez a "grandeza" esteja fora de moda, tal como o transcendente, mas é difícil continuar a viver sem esperança de um encontro com o extraordinário."


"O desejo mais profundo do nosso eu solitário é a sobrevivência, quer seja no aqui e agora ou transcendentalmente  algures. Crescer graças ao génio dos outros é aumentar as possibilidades de sobrevivência pelo menos no presente e no futuro próximo."


Harold Bloom, "Génio", 2014 (Tradução do original de 2002)

Herta Müller

   "É uma noite no café, que em plena cidade de se apodera da hora, assim como aqui e ali, como por acaso, uma sombra de dimensões humanas se apodera da sua vida, pondo-lhe fim no rio. Está na cidade um inverno que é lento, senil, que inocula nas pessoas o seu frio. Está ali na cidade um inverno em que até a boca arrefece, em que as mãos, ausentes, o mesmo que agarram deixam cair, porque as pontas dos dedos ficam nas mãos como couro. Está ali na cidade um inverno em que a água nem sequer se resfria em gelo, em que os velhos carregam as vidas passadas como sobretudos. Um inverno em que os novos têm de odiar-se como à infelicidade, quando a suspeita de felicidade lhe sobrevém entre as têmporas. E, contudo, buscam a sua vida, de pupilas nuas. Ronda por ali no rio um inverno onde, em vez de água, só o riso gela. Onde balbuciar é já falar e meia palavra é já um grito. Onde cada pergunta se extingue na garganta e, muda, cada vez mais muda, não pára de bater com a língua contra os dentes." (p. 183)

   "Lá fora, quando se ergue o queixo debaixo da árvore e se olha para o alto, a bola verde amolgada na forquilha dos ramos é tão pequena e escura que parece lá em cima a réplica do olho. Passam sobretudos em lugar de pessoas, é novembro que caminha dentro dos sobretudos. Na segunda semana, ele é tão melancólico e velho que já com a manhã chega o entardecer." (p. 188)


Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)

junho 17, 2014

Herta Müller

     "O negro no olho do ditador é do tamanho da unha no polegar de Adina, quando o polegar se curva sem nada agarrar. O negro do olho do ditador vê todos os dias o país profundo a partir do jornal." (p. 28)  

   "À janela da cozinha está a lua, tão inchada que não pode demorar-se mais. Está carcomida pelo alvorecer. São seis horas e a lua passou a noite em claro, ainda tem três dedos amarelos, e um é cinzento e segura-lhe a testa. Os autocarros rumorejam matutinos, ou então é lá em cima na fronteira da noite, onde a lua, quando não está redonda, fica dependurada depois de deixar a cidade. Os cães uivam como se a escuridão tivesse uma enorme pele e o vazio das ruas, no crânio, um cérebro tranquilo. Como de os cães da noite temessem o dia em que a fome que busca se encontra com a fome que vadia, quando as pessoas por eles passam. Quando o bocejo se encontra com o bocejo e, na mesma exalação da boca, a fala com o latido.  
       Os colãs cheiram a suor de inverno. Adina enfia-os como um sacolejar de comboio sobre as pernas nuas, enfia o casaco comprido sobre a camisa de noite. No casaco pendem ainda os casaquinhos negros do viaduto e os casacões verdes do autocarro. Nos botões do casaco, ainda presente a pequena estação e o negro do olho. No bolso do casaco está ainda dinheiro da viagem e a lanterna de bolso. A chave está em cima da mesa da cozinha. Os sapatos ainda têm colada a porcaria do pátio da caserna. Ela enfia-se nos sapatos." (p. 161-162)

     "Adina veste os colãs, as suas pernas não estão dentro dos colãs. E veste o casaco, os seus braços não estão dentro do casaco. Só a camisa de noite lhe sai por baixo do casaco comprido. Adina entala a camisa de noite nos colãs. As chaves, o dinheiro, a lanterna estão no bolso do casaco. Na cozinha, o sol repousa sobre a mesa, debaixo da mesa repousa a porcaria dos sapatos, na parede o relógio faz tiquetaque e escuta-se a si mesmo. E quase meio-dia. Adina enfia-se nos sapatos, os seus dedos dos pés não estão dentro dos sapatos, estão dentro do relógio. Adina sai da cozinha em bicos de pés, antes que os dois ponteiros se encontrem no cocuruto do dia, onde são doze horas. A porta abre-se, a porta bate ao fechar-se.

      A respiração de Adina caminha à sua frente, ela estende a mão para a agarrar, já não consegue apanhá-la." (p.166)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 

junho 13, 2014

Herta Müller

"Ao oitavo dia, diz o porteiro, ainda sobrou a Deus, de Adão e Eva, um tufo de cabelo. A partir dele fez as aves. E ao nono dia, perante o vazio do mundo, Deus deu um arroto. A partir dele fez a cerveja." 

"São os meses em que as mulheres riem todos os dias à mesma hora. Um riso insonso de inverno, tirado de memória, porque o vapor se mantém cego até à primavera."

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 

maio 29, 2014

Herta Müller

"Aí, as crianças arrancam da terra os talos de erva com caules leitosos e sugam-nos como num jogo. E o que está em jogo é a fome. O crescimento dos pulmões para, o leite das ervas alimenta os dedos emporcalhados, as fiadas de verrugas. Não os dentes de leite, esses caem na mão ao falar. As crianças atiram-nos por cima dos ombros para trás das costas, hoje um, amanhã outro, para o meio da erva. Enquanto voa no ar, gritam:
   Rato, rato, traz-me um dente novo,
   que eu dou-te o velho.
   Só quando o dente se perdeu na erva em parte incerta, eles olham para trás, e chamam-lhe infância.
   O rato fica com os dentes de leite e cobre de azulejos brancos os seus corredores por debaixo do prédio. Dentes novos ele não traz." (p.50)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012) 
"Paul escreveu um papel com a dieta recomendada para um cigano velho que teve alta do hospital. O homem não sabia ler. Paul leu-lhe o que estava escrito no papel. O homem não sabia ler. Paul leu-lhe o que estava escrito no papel. Estava também escrito CARNE DE COELHO. Não posso pegar nesse papel, disse o homem, o senhor é um cavalheiro, tem de me escrever outro papel. Paul riscou CARNE DE COELHO com um só traço, o homem abanou a cabeça. Isso continua aí escrito, o senhor é médico, mas não é cavalheiro. O senhor não compreendeu como dentro de si bate o coração. O coração da terra bate dentro do coelho, meu cavalheiro, é por isso que somos ciganos, por compreendemos, por isso temos de correr mundo" (pp. 39-40)

Herta Müller, "Já então a raposa era o caçador" (trad. 2012)