julho 16, 2014

Albert Camus

"O Sol já atingiu metade do céu. Pelas fendas da rocha vejo o buraco que ele faz no metal incandescente do céu, entornando rios de chamas sobre o deserto incolor. No caminho, que se desenrola à minha frente, nada até ao horizonte, nem um grão de pó. Atrás de mim andarão já a procurar-me, ou talvez ainda não, era só de tarde que abriam a porta para eu sair um bocadinho, depois de haver todo o dia arranjado a casa do feitiço, renovando as oferendas. À noite começava a cerimónia. Às vezes batiam-me, outras não, mas eu servia sempre o ídolo, esse ídolo cuja lembrança tenho gravada a fogo, jamais um deus me possuiu tanto. Concedi-lhe os meus dias e as minhas noites. Devi-lhe a dor e a ausência da dor e até o desejo - à força de assistir diariamente àquele acto impessoal e perverso, mas sem o ver, pois tinha de olhar para a parede, sob pena de me espancarem. Mas, com a cara unida ao sal, dominado pelas sombras que se agitavam em volta, eu escutava um grito e, de garganta seca, sentia o desejo queimar-me, um desejo sem sexo que me comprimia as fontes e o ventre. Assim os dias se sucederam aos dias, mal os distinguia uns dos outros, tal como se eles se liquefizessem no calor tórrido da reverberação insidiosa das paredes de sal. O tempo tornara-se uma articulação informe em que rebentavam, com intervalos regulares, os gritos de dor e de posse; tempo sem idade, sobre o qual reinava o feitiço como o sol feroz sobre este abrigo de pedras. E agora, como então, eu deploro a desgraça e o desejo, queimado por uma esperança malévola. Quero atrair, beijo o cano da espingarda e sinto a sua alma lá dentro... a sua alma, porque só as espingardas têm  alma... No dia em que me cortaram a língua, aprendi a adorar a alma imortal do ódio!"
O Exílio e o Reino (O renegado ou um espírito confuso)
Albert Camus