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janeiro 22, 2021

©raquelsav | 2020

Há palavras que não dizemos
e que pomos sem dizê-las nas coisas.
E as coisas guardam-nas,
e um dia respondem-nos com elas
e salvam-nos o mundo,
como um amor secreto
em cujos dois extremos
há uma só entrada.
Não haverá uma palavra
dessas que não dizemos
que tenhamos colocado
sem querer no nada?

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O ser começa entre as minhas mãos de homem.
O ser,
todas as mãos,
qualquer palavra que se diga no mundo,
o trabalho da tua morte,
Deus, que não trabalha.

Mas o não ser também começa entre as minhas mãos de homem.

O não-ser,
todas as mãos,
a palavra que se diz fora do mundo, 
as férias da tua morte,
a fadiga de Deus,
a mãe que nunca terá filho,
meu não morrer ontem.

Mas as minhas mãos de homem onde começam?

Roberto Juarroz | Poesia Vertical | Campo das letras| 1998


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A PALAVRA HOMEM
A palavra Homem, como vocábulo
no lugar que é o seu
no dicionário Morais:
entre hombridade e homenagem.

A cidade
velha e nova,
muito animada, com árvores
também
e carros, aqui

ouço a palavra, o vocábulo
ouço-o muitas vezes aqui, podia
dizer em que bocas, podia começar
a contá-las.

Onde não há amor
não pronuncies essa palavra.
Johannes Bobrowski | Sinais de tempo in Como um Respirar- Antologia poética | Edições Cotovia| 1990


janeiro 21, 2021

 

©raquelsav | 2021

A guilhotina do dia
decapita
a nomenclatura triste das coisas
e tudo passa a ter um só nome,
pressentido, vertiginoso, impronunciável.
Tudo joga o grande jogo:
desfilar,
transitar como um gesto de adeus,
tremer, saltar, pensar ou não pensar,
sentir, cair, calar o nome.
Calar o nome,
dizê-lo
sem a palavra agreste de uma linguagem.
Toda a realidade é afinal isto:
dizer um nome do outro modo.

Roberto Juarroz | Poesia Vertical | Campo das letras| 1998

dezembro 16, 2014

Roberto Juarroz

©raquelsav. MontBlanc
Ir até ao extremo é ficar sem lugar,
porque o extremo não é um lugar,
mais além não há espaço
e quem foi até ao extremo
já não pode retroceder.
Ir até ao extremo consiste precisamente
em achar a impossibilidade do regresso.
Ou talvez tão-só 
a impossibilidade.
E o impossível não precisa de lugar.

Roberto Juarroz
Poesia Vertical

outubro 04, 2014

Roberto Juarroz

©Brassai
PLAY  Sibelius Violin Concerto - Maxim Vengerov, Daniel Barenboim, Chicago S.O. (CSO)

Registar todos os dados, 
embora não saibamos decifrá-los.

Registar, por exemplo, 
que também os esquecimentos têm diferentes cores
e há assim esquecimentos verdes ou vermelhos,
que sustêm seguramente olhares vegetais
ou apagam sombrios desníveis da vida.
E registar que há lembranças completamente transparentes,
lembranças que não sabemos de quê, mas lembranças,
excessos de memória
ou esquinas de não ser no que foi.

Registar que os sonhos geram cristais
que servem como lentes para olhar o mundo
e também o seu revés.
Registar que há flores sem perfume
e perfumes sem flor que não se encontram,
materiais para acabar de construir o homem
e materiais para começar a construir deus,
caminhos até tudo e até nada,
amores com os olhos para cima
e amores com os olhos para baixo
e até amores sem olhos,
dura, violentamente cerceados.

Registar que entre o céu e a terra tudo acontece,
mas também que tudo acontece às vezes entre a terra e a terra,
embora os sinos toquem em momentos equivocados
ou com sons que são para outra coisa.

Registar as palavras de perto e nunca de longe,
como os rostos e a morte.

E registar o mais palpável, as ausências,
as que sempre o foram,
as que nunca o foram,
o seu desafio ao ser,
a sua correcção do ser
a partir do oásis do não-ser.

Sim. Registar todos os dados,
embora não haja quem os decifre.
Talvez no final não haja necessidade de os decifrar. 

Roberto Juarroz, Poesia Vertical, Campo das Letras

setembro 08, 2014

Roberto Juarroz

©Harry Gruyaert Mali. Town of Gao. 1988. Terrace of a local hotel.

Há palavras que não dizemos
e que pomos sem dizê-las nas coisas.

E as coisas guardam-nas,
e um dia respondem-nos com elas
e salvam-nos o mundo,
como um amor secreto
em cujos dois extremos
há uma só entrada.

Não haverá uma palavra
dessas que não dizemos
que tenhamos colocado
sem querer no nada?

Roberto Juarroz