"São belíssimos, os olhos dele; gosto que sejam assim, maiores um pouco do que tudo o que é visível. Nunca saberemos se há coisa que lhe escape, ou - pelo contrário - para ele o mundo não é simples pormenor de tudo o que vêem, mosca-volante que pode obcecar-nos sem existir. Caro Senhor, desde que me casei com o seu amigo nunca pude certificar-me dos seus olhares. O próprio objecto que fixam talvez seja o próprio objecto que o seu espírito pretende reduzir a nada.
A nossa vida é sempre aquela que o senhor conhece: nula e inútil a minha; a dele toda hábitos e ausências. Não é que não desperte, não reapareça quando quer e terrivelmente vivo. Gosto muito dele assim. Grande e temível de repente. A maquinaria dos seus actos monótonos explode; o seu rosto cintila; diz coisas que em geral só oiço por metade mas não se apagam mais da minha memória. Não quero, porém, esconder-lhe nada ou quase nada: Acontece-lhe ser muito duro. Não creio que possa outra pessoa sê-lo tanto como ele. Parte-nos o espírito com uma palavra, e tenho a sensação de ser um vaso estragado que o oleiro deita ao lixo. É, caro Senhor, duro como um anjo. Não repara na força que tem: usa inadequadas palavras mas verdadeiras de mais, que aniquilam uma pessoa, sabem acordá-la em plena estupidez, perante si própria, apanhada em cheio no ser aquilo que é e tão naturalmente viver de frioleiras. Vivemos muito à vontade, cada qual no seu absurdo e como peixes na água; só por acidente notamos que a vida das pessoas razoáveis está cheia de estupidez.
O que pensamos, nunca pensamos que esconde o que somos. (...)
O Sr. Teste, aliás, não precisa de falar para restituir às pessoas que o rodeiam à humildade e quase animal simplicidade. A sua existência parece enfraquecer todas as outras, e até as manias que tem conduzem à reflexão.
Não imagine, porém, que seja sempre difícil ou molesto. Se soubesse como ele pode ser diferente!... Às vezes é duro, de facto, mas tem horas de requintada e surpreendente doçura que o invade e parece caída dos céus. Que mais presente haverá tão misterioso e irresistível como o seu sorriso; a sua preciosa ternura, que é rosa de Inverno. Não se pode, no entanto, prever-lhe facilidade ou violências. É inglório esperar dele rigor ou favor; com profunda distracção e impenetrável ordem de pensamentos, sabe frustrar tos os cálculos que os humanos vulgarmente fazem sobre o carácter dos seus semelhantes. (...) Confesso, no entanto, que nada me liga tanto a ele com esta incerteza de humor. Ao fim e ao cabo, sou bastante feliz por não saber compreendê-lo excessivamente, não adivinhar cada dia, cada noite, cada movimento próximo da minha passagem na terra. "
Carta da Senhora Émilie Teste
Paul Valéry, O Senhor Teste, Relógio D'Água, 1985