outubro 01, 2022


 © Elliott_Erwitt | Paris. 1998. 

Eu era lume sobre sede e tu procuravas dar-me a beber, gomo a gomo, laranja-cor-de-sangue de Simic. Demoravas repetidas vezes:

- A laranja parte-se em silêncio à entrada de noites fabulosas.

E eu ouvia cada sílaba, na cadência dos teus lábios secos. Não entendia. Sempre ouvira dizer que de manhã é ouro, à tarde prata mas que, à noite, a laranja mata. E era noite. Demasiadamente noite.

Desesperada, repeti, em fuga, baixo contínuo, o que me pareceu uma troca justa.

|| Um gomo por uma nota de Bach. Uma sílaba tua por uma nota de Bach:||

Tu recusaste. Disseste que eu não tinha a cabeça de vidro.

- Não és transparente e não se come laranja com a boca suja. Não distinguirias o doce da laranja do amargo da palavra. Nunca, para ti, o gomo secreto de Al Berto. Não és do lado de fora da cidade.

Ficámos em silêncio. 

Impusemos a despedida.

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Hoje, ainda te oiço:

- Tu não tens como matar a sede.

Concordo. Nunca possuirei a transparência louca e ácida de quem compreende a laranja. Mas releio-me na "alta solidão que nem pode ser nossa de tão pura". 

E eu sei que

não há sede que a palavra, nos teus lábios, não (me) mate.