APESAR DE TUDO
Passou muito tempo. O que trouxemos connosco das nossas casas,
tudo se rompeu, se gastou, se sumiu.
O som do bater da porta no ardor-do-sol
a voz que dizia no corredor "como vens tarde",
o pente branco com que se penteava a mulher em frente ao espelho,
um cigarro que fumávamos à janela numa noite de-primavera
empurrando a cauda da Ursa Menor,
a sombra de duas mãos por sob a lâmpada, entre dois pratos de fruta, -
Tudo quanto trouxemos connosco dentro de nossas trouxas,
aquelas peúgas brancas que usávamos outrora de verão na praia,
e as ceroulas brancas e as camisolas desportivas que se diriam assentar-bem no corpo de Abril,
e ainda a tesourinha com que cortava outrora a nossa irmã mais-nova as unhas no peitoril-da-janela
e os reflexos das vidraças que tremiam sobre suas faces e suas mãos,
tudo isso se desfiou, se despedaçou, se gastou,
enferrujou também a tesourinha, quebraram--se-lhe as pontas,
é como a andorinha morta - ali no chão sobre a pedra -
ao lado da máquina de barbear e do sabão do mar -
não reparamos nela - cortamos as unhas dos pés, cortamos os calos
é como uma chave ferrugenta - não serve - as fechaduras quebraram-se.
Tudo quanto trouxemos connosco em nossas trouxas e em nossas malas
tudo se rompeu, se gastou. Não resta nada.
Apesar de tudo, de vez em quando, à hora em que anoitece
e a Ursa Menor pendura seu pequenino-farol à entrada da tenda
cavando uma pequena vala com suas unhas na terra seca,
o Petros e o Vassílis ou o Ti' Andónis
procurando dentro da trouxa certa colher perdida ou o púcaro,
suas mãos ficam-lentas - esquecem-se
e à sua volta o ar torna-se redondo e imóvel como o azeite dentro da dorna
e o silêncio fica como a pedra-de-moinho quando lhe cortam a água.
Então ouvimos de súbito aquele esquecido som
como se cortassem com esta tesourinha os papéis do guarda-pratos em véspera de Natal,
como se erguidos nas pontas dos pés acendêssemos na lua o nosso cigarro.
E então sabemos que lá-bem-no-fundo das nossas malas,
por debaixo das não-lavadas camisas e das esburacadas peúgas,
resta ainda uma toalhinha bordada de familiar serenidade
e aquela sombra de duas mãos amadas como duas grandes secas parras.
E é estranho. Queremos chorar.
Giánnis Ritsos (1909 - 1990) | Antologia | Fora do Texto | 1993 | Trad. Custódio Magueijo
Passou muito tempo. O que trouxemos connosco das nossas casas,
tudo se rompeu, se gastou, se sumiu.
O som do bater da porta no ardor-do-sol
a voz que dizia no corredor "como vens tarde",
o pente branco com que se penteava a mulher em frente ao espelho,
um cigarro que fumávamos à janela numa noite de-primavera
empurrando a cauda da Ursa Menor,
a sombra de duas mãos por sob a lâmpada, entre dois pratos de fruta, -
Tudo quanto trouxemos connosco dentro de nossas trouxas,
aquelas peúgas brancas que usávamos outrora de verão na praia,
e as ceroulas brancas e as camisolas desportivas que se diriam assentar-bem no corpo de Abril,
e ainda a tesourinha com que cortava outrora a nossa irmã mais-nova as unhas no peitoril-da-janela
e os reflexos das vidraças que tremiam sobre suas faces e suas mãos,
tudo isso se desfiou, se despedaçou, se gastou,
enferrujou também a tesourinha, quebraram--se-lhe as pontas,
é como a andorinha morta - ali no chão sobre a pedra -
ao lado da máquina de barbear e do sabão do mar -
não reparamos nela - cortamos as unhas dos pés, cortamos os calos
é como uma chave ferrugenta - não serve - as fechaduras quebraram-se.
Tudo quanto trouxemos connosco em nossas trouxas e em nossas malas
tudo se rompeu, se gastou. Não resta nada.
Apesar de tudo, de vez em quando, à hora em que anoitece
e a Ursa Menor pendura seu pequenino-farol à entrada da tenda
cavando uma pequena vala com suas unhas na terra seca,
o Petros e o Vassílis ou o Ti' Andónis
procurando dentro da trouxa certa colher perdida ou o púcaro,
suas mãos ficam-lentas - esquecem-se
e à sua volta o ar torna-se redondo e imóvel como o azeite dentro da dorna
e o silêncio fica como a pedra-de-moinho quando lhe cortam a água.
Então ouvimos de súbito aquele esquecido som
como se cortassem com esta tesourinha os papéis do guarda-pratos em véspera de Natal,
como se erguidos nas pontas dos pés acendêssemos na lua o nosso cigarro.
E então sabemos que lá-bem-no-fundo das nossas malas,
por debaixo das não-lavadas camisas e das esburacadas peúgas,
resta ainda uma toalhinha bordada de familiar serenidade
e aquela sombra de duas mãos amadas como duas grandes secas parras.
E é estranho. Queremos chorar.
Giánnis Ritsos (1909 - 1990) | Antologia | Fora do Texto | 1993 | Trad. Custódio Magueijo