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fevereiro 05, 2017

palimpsesto [2.1]

Acto Primeiro (Versão 2.1)
[Os dois corpos celestes permanecem deitados em decúbito ventral. Nada se moveu. A Terra continua suspensa, mas a tocar o chão, prostrada, também, como os corpos. A esfera achatada que a compõe aparenta ter perdido volume, aparenta mais achatada que nunca, mantém o seu formato frouxamente. É visível, ao longe, a tabuleta improvisada que a identifica.
 <---- TERRA
Essa tabuleta é útil a quem passa. Os dois corpos celestes, adormecidos, balbuciam alternadamente, materializando os frutos de pesadelos, em tom crescente]

[quase inaudivelmente]:
@: Aos 64 anos, Bruna Lombardi, de biquíni, reúne elogios.
π: Trump proíbe entrada de muçulmanos nos EUA.

[entre-dentes e vagarosamente] 
@: Após separação de Angelina Jolie, Brad Pitt terá engravidado Kate Hudson.
π: Cartazes em manifestação em Chicago anotam: "Rise up".

[sussurrando] 
@: Salvem a Melania.
π: Rússia financia campanha de Le Pen.

[ciciando]
@: Casa Branca enganou-se a escrever Theresa May e esta ficou com nome de atriz porno.
π: Madeleine Albright admite registar-se como muçulmana.

[aumentando o volume e o ritmo mas ainda baixinho e vagaroso]
π: Hitler eleito democraticamente.
@: Melania (o)usada na capa da Vanity Fair mexicana.

π: [conservando o volume mas em ritmo crescente, denunciador de nervosismo, ainda deitado, mas por pouco tempo] Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
Impressora 3D imprime pele humana, 100% funcional. 
Cientistas criam embrião híbrido metade porco, metade humano.
"1984" de Orwell esgota no Amazon.
repeat
repeat

@: [em volume idêntico mas tom conformado e suspirante] Valter Hugo Mãe não matou o Pai Natal mas disse umas verdades sobre os orifícios da tia de alguém.

[π levanta-se energicamente, em sobressalto e em volume e ritmo crescente, nervoso]

π: "Todas as criaturas que caminham sobre duas pernas são nossas inimigas"*
"Todos os hábitos do Homem são perversos"* 
"Nenhum animal usará roupas"* 
"E vou poder continuar a usar laçarotes na crina?"*
[gesticulando com um movimento de rotação da cabeça em torno do pescoço, 90º e -90º, 90º e -90ºe 90º e -90º]
Não, não, não! Não vamos simplificar os 7 mandamentos! 
 
@: [Ainda deitada, em tom suspirante, tapando os ouvidos com cada uma das mãos, respectivamente]
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet
Vintage, Gourmet

π: [Abanando a cabeça lentamente, olhos fixos no chão, em tom de resignação]
"Quatro patas bom, duas pernas mau."*

π: [Ganhando fôlego, timidamente] Spiegelman retrata os nazis como gatos, os judeus como ratos, os polacos como porcos e os americanos como cães. Todos são terrivelmente humanos"**

@: [Tirando as mãos e dando bofetada a si própria] Rússia aprova "lei da bofetada".

π: [Em ritmo novamente crescente] Porque maior do que toda a vergonha da guerra é a vergonha de os homens já nada quererem saber dela, suportando que haja guerra, mas não que a tenha havido.***

@: [Abrindo os olhos lentamente]Pedro Chagas Freitas.

π:[Gritando] "(17) "Vem! Vou mostrar-te como será julgada a grande prostituta, que está sentada à beira de muitas águas. Os reis da terra prostituíram-se com ela. Os habitantes da terra ficaram bêbados com o vinho da sua prostituição" (20) O fim dos tempos já começou- Depois disto vi um Anjo descer o céu. (...) Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****  

@: [Acorda sobressaltada, senta-se ortogonalmente à superfície e grita] Um dia vai arder tudo. Tudo o que vês, irá arder um dia.

π: [No mesmo tom aflito] Escathon, Escathon...

@:[A chorar e soluçar] Um dia irá arder tudo!

[Os corpos celestes voltam a cair no chão, exaustos, como corpos cilíndricos e invertebrados. Após a queda segue-se um momento de silêncio interrompido pelo movimento enérgico de @, que se levanta a correr. π continua imóvel e deitado.]

@: A música. A música. A música. Espera, a música. O nosso produtor de som abandonou-nos. Espera.

[@ mexe no telemóvel e faz soar as colunas. Coloca um gancho no cachaço de π e no seu. Enquanto ouvem a música PLAY
Kraftwerk | News, os dois corpos celestes são elevados de mão dada, ficam suspensos. Todo o cenário escurece. Há leves luzes que imitam estrelas. Há espelhos que multiplicam essas luzes de estrelas. E outros espelhos que multiplicam as imagens dos espelhos. Há difusão de imagens. Dificuldade em identificar objectos. Os nossos corpos celestes são luzes incapazes de gerar imagens nos espelhos. Observam que a Terra também não reproduz imagem no jogo de espelhos. Olham-na com tristeza. Choram e chove. Há um espelho no chão. Confundem-se os pingos da chuva, reproduzidos pelos espelhos em movimentos ascendentes e descendentes, como se desaguassem numa nascente. Princípio e fim unidos. Os corpos continuam a subir muito lentamente e só param quando alcançam as tabuletas que os identificam
 <---- π       <---- @   
Continuam a olhar para a Terra]

@: Um dia vai arder tudo.
π: Como eu gostava que concordássemos em discordar! 
@: Parecem formigas.
π: As formigas não destroem os seus próprios carreiros.

[Observam novamente a Terra, em silêncio]

π: [retoma conversa]Os sobreviventes do "11 de Setembro", os que estavam dentro do edifício não se aperceberam do que se passava, ao contrário do resto do mundo.
@: "Há que sair da ilha para ver a ilha".
π:[vira-se surpreendido] Saramago?
@: Hoje já não seria assim. Nas redes sociais apareceria, sordidamente, cada pormenor, na perspectiva de cada vítima.
π: Houvesse rede.

π: [em tom profundo-cavernoso]"Vi então tronos, e os que se sentaram nos tronos receberam o poder de julgar."****
@: Um dia será assim.
π: Assim, como?
@: Uma espécie de purgatório digital.
π: E não precisaremos de ninguém para nos julgar - apunhalados pela nossa consciência, qual Samurai.
@: Olha o talhante.
π: Que fará a entrar no W.C. público?
@: Não quero imaginar. Mas estou contente por ser vegetariana.
π: Deves pensar que o Miso é mais higiénico.
@: [dirigindo olhar sedutor] Tu sabes, em questões de comida, prezo a higiene acima de tudo.
π: Olha o fanático do Benfica a contornar o Café Central, na sua lambreta icónica.
@: E o espalhador de folhas? Haverá profissão mais inútil?
π: Conheço uma.
@: Eu também. A tua.
π: Nunca serei capaz de te dar poesia, pois não?
@: Sabes o que penso da poesia. E não faço questão de mudar de opinião.
π: Sempre imaginei que o amor nos salvasse.
@: O amor? Achas? Achas mesmo? Inocência! O amor é a forma de egoísmo mais pura que conheço. Preferimos amar a ser amados. Somos felizes quando nos sabemos capazes de amar. E não é para dar a mão a quem amamos, mas para conhecermos os limites da nossa. 
π: Então por que sobrevivemos?
@: Porque tudo o que nos garante a sobrevivência dá-nos prazer: comer e foder.
π: E sobreviveremos?
@: Não sei, passamos a vida a contabilizar calorias e doenças venéreas.
π: Talvez sinta algum medo.
@: O medo salva-nos.
π: E tolda-nos. Inibe-nos. Não nos deixa sermos o que gostaríamos de ser.
@:  Na maioria das vezes, é uma bênção. Se cada ser humano fosse na medida em que gostaria de ser, verdadeiramente, talvez já não existisse mundo.
π: A maldição do homem é o que o distingue dos outros animais.
@: E ainda dizem que "nada é mais bonito que a inteligência"*****.
π: Crítica da razão Pura?
@: Não! Lidl- a campanha do creme Cien Aqua - "para mulheres mais do que bonitas".
π: O conhecimento é, cada vez mais, um lugar comum.
@: O que é verdadeiro acaba em clichet porque funciona.
π: Até não haver matéria de clichet que suporte os milhões. Irónica democracia. Não nos resta mais nada em que acreditar?
@: Eu acredito no Head & Shoulders e no Agroal, ajudam-me na psoríase.
π: Desculpa se te acordei, há pouco.
@: Eu nunca acordo- durmo desde que nasci.
π: E quando pretendes acordar?
@: Hoje não, com toda a certeza. Hoje é mau dia para acordar.
π: Por teres medo?
@: Claro. Medo, medo, medo é tudo o que tenho.
π: Não acredito. Além disso, o teu medo não é o meu medo.
@: Não basta haver nomes a mais ainda queres que sejam ambíguos?
π: Os conceitos nunca serão a mais. Aumentam os conceitos, aumenta a liberdade. 
@: E, no entanto, criá-los é dar oportunidade de nomear a estupidez, a inutilidade, a futilidade.
π: Nós somos diferentes. Não falamos a mesma língua.
@: Mas compreendemo-nos.
π: Às vezes tenho as minhas dúvidas.
@: Experimenta. 

[π faz um pequeno compasso de espera e ataca]
π: Jogos de linguagem.
@: "Cada cabeça sua sentença".
π: Cinética filosófica.
@: "Onde vai um português vão dois ou três".
π: Imperativo categórico.
@: "Quem tem cu tem medo" 
π: Imanentização escatológica.
@: "A esperança é a última a morrer".

[π, ainda suspenso e cintilante, olha para a Terra. A Terra vai-se enchendo de luz. Aparenta mais volume mas pode ser uma mera ilusão óptica. Os dois corpos suspensos bamboleiam em direcção à Terra, imitando o movimento de voo. Espetam as suas tabuletas na Terra, pela seguinte ordem: 
  <---- TERRA     <---- π     <---- @   
Nenhuma das tabuletas gera imagem nos espelhos. Os corpos e a Terra também não. Deitam-se sobre ela em decúbito ventral, acompanhando a sua forma esférica-informe, reservando aos braços a posição lassa que lhes é habitual.]  

π: Achas que ainda há esperança?
@: Para nós? Que importa? Somos personagens de ficção.
π: [ri desalmadamente] Nós? ahahahah? O quê?
@: [séria] Sim. Há quem queira fazer de nós super-heróis da BD.
π: Tipo Dog Mendonça e Pizzaboy?
@: Eu disse-te que não estávamos sozinhos.
π: Assusta-te?
@: Sermos fruto da imaginação ou heróis em cuecas?
π: Não estarmos sozinhos.
@: Se formos fruto da imaginação, acabamos onde começamos e começamos onde acabamos. Ou não achaste estranho o espelho não reproduzir a tua imagem?
π: É por isso que este Acto continua a ser o Primeiro?
@: Não. Isso é um capricho matemático! Tal como o Nautilus Marinho e os coelhos, obedecemos à sucessão de Fibonacci. 

[Os dois corpos viram-se lentamente, sincronamente, posicionam-se em decúbito dorsal. Observam as estrelas e as imagens das estrelas. E as imagens das imagens. Até que adormecem, balbuciando]
  
π: Terra... Espelho... Ausência de imagem... Fruto da imaginação?... Terra?
 
[Ao longe ouve-se  PLAY Nick Cave& The Bad Seeds | Magneto
E o mistério não ficou desfeito: terá o produtor de som voltado a tempo do fim do segundo Acto Primeiro?]
<--- vasleuqaR <---
______
* George Orwell | A quinta dos animais | Antígona | 2013
** Revisão crítica de Maus de Art Spiegelman in The Times
***Karl Kraus | Os últimos dias da humanidade | Antígona | 2003
**** Bíblia Sagrada
***** Campanha publicitária do Lidl

NOTA: Neste texto, qualquer semelhança com factos verídicos não é pura coincidência.

janeiro 07, 2017

palimpsesto [2.1]

                                 Acto Primeiro (Versão 2.1)

[dois corpos celestes em decúbito dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente prostrados; ecoa, ao longe, a música:
                                                  Popol Vuh | Aguirre PLAY]

π: [em voz gutural-lassa] 
  No princípio era o verbo*...

@: [com fastio]
   Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.

π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
 (No início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**

@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***

π:  És incapaz, não és?

@: Perfeitamente!

π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!

@: Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O universo é um Grande Ovário...

[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]

    ...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!

π: Disseste alguma coisa?

@: Não, não, esquece.

π: Mas a propósito, foi o ovo.

@: A sério?

π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
    Queres que te faça um esquema?

@: Agora não me apetece, eu depois vou ao Google.
      Mas tu és um poço.

π: Tens razão, afundo-me com facilidade.

@: Devia levar-te mais a sério, não era?

π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.

@: Xiuuu...

π: O que foi?

@: [sussurrando:]
  Cala-te, acho que não estamos sozinhos.

π: Como assim?

@: [tapando, a custo, cada boca com cada mão]
   Xiuuu....

[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]

@: Esquece. Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.

π:  Ou Deus, ou o Grande Ovário.
    
 [π inspira profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma meada de lã em novelo, mas em slow-motion]

π: Como foi a tua entrada no novo ano?

@: A mesma rotina de sempre.

π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio, letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de foguetes?

@: Não. A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas primeiras urinas do ano.

π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.

@: Desde quando discutimos excedentes orgânicos?

π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.

@: Gosto mais de ti a cagar erudição.

π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?

@: O "H"?

π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.

[e fez-se silêncio...  após 5 minutos de silêncio total:]

@: Estás a incomodar-me.

[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]

@: A razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?

π: É por isso que gosto de poesia.

@: Eu detesto poesia. A tua poesia.

π: Eu sei.

@: Recita-me um poema.

[π sobe novamente para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama profundamente]:

π:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.

Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.

Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.

Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.


@: Muito mau, mesmo!

π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.

@: Agora confundes o verbo querer com crer?

π: Não!

[π escorrega novamente e junta-se a @]

π: Porquê a arroba?

@: Foi o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.

π: Ninguém se chama assim.

@: Pois não, sou um mito da criação.
   E o teu pi?

π: De urso, então?
[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar]                                                <--- vasleuqaR <---
___________________________________

*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1

** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006


***  PLAY Carlos Carrapiço - O poeta