julho 02, 2015

"Ele não sabe, mas há tantos mundos como distâncias a que se está do chão, e hoje as mulheres louras não o olham, ou melhor, não o vêem, e os que o vêem não o olham, porque há um conhecimento que vem da proximidade da indiferença. Ele não sabe, mas o seu mundo é o dos que, vendo-o, não o olham, e sabem, e este facto tornou-lhe estranha toda a sua vida, foi ao longo dela e roubou-lha e a sua vida pertence agora a outro, e há nela o vazio de uma casa assaltada."

"nunca foi crente, mas sempre fingiu acreditar para sobreviver. E fingiu tão bem que acabou a acreditar. A crença porém é uma questão de palavras, do seu excesso ou da sua falta. E ele agora não fala. Limita-se a olhar. E a perder-se no labirinto de luz, no resíduo periférico da paisagem, com a sua nitidez inatingível. No centro, uma mancha cresce e empurra o mundo: de início os objectos curvavam-se, como num espelho convexo, mas depois começaram a diluir-se, até se apagarem. E a luz expandiu-se, tornou-se o seu medo. De se perder nela. De à sua volta tudo ficar turvo. Esta luz podia ter um nome consolador. Mas não tem, são simplesmente os olhos a morrer. dantes, quanto mais falava, mais claros ficavam os objectos. E, quando definitivamente se calou, o mundo tinha uma nitidez insuportável. Depois, os seus olhos adoeceram. A luz que os tornava nítidos explodiu. Uma lenta explosão desintegrou formas, limites, cores e distâncias. E ele aprendeu a desviar os olhos, para ver, tentar captar uma nitidez primitiva. Às vezes perguntam-lhe por que não me olhas?
E ele responde: para te ver

é um homem anónimo: morte encerrada na morte. O seu nome morreu quando morreram os que o chamavam. E o tempo serviu-lhe para arrancar todas as raízes. Liberta, a morte repetiu-se.

De manhã, os caminhos são nítidos. Depois, a luz apaga-os.
O homem dobrado sobre a terra soletra o pó. E a mesma palavra endurece-lhe os lábios. Até nada dizer. O silêncio responde ao silêncio. Entre eles o gesto apaga-se, desenhando-se.

Com a tua sombra, abre na luz a porta"


Rui Nunes,
Os Olhos de Himmler, Relógio d'Água, 2009