maio 17, 2014

Rui Nunes

"vieste com sinais de antiga alegria. E vi que não tinhas sido mais do que um trajecto, o percurso onde te transformaras num estrangeiro. Mas o que amei em ti foi a possibilidade de todos os caminhos por onde poderias ter ido e onde sempre te reconheceria. Isso, antes de saber que o meu destino era a realização de uma morte antecipada
e depois? nós temos a consciência de que não somos génios, do assim assim que somos, aborrecemos algumas palavras e delas nos rimos, e dos directores gerais da cultura, seus mansos servidores, e de outros sábios que mijam e cagam como nós, de calças abaixo, sentados nas sanitas, sem espanto de Alexandre, aliás sem nenhum espanto, monocórdicos e graves, que têm no futuro um caixão de primeira e um epitáfio ou um poema em memória de." (pp. 46-47)

"não te podia odiar, e era esse o castigo, porque te tornaras indiferente como lugar nenhum, e o que havia em ti era anterior aos meus olhos, estavas como se ninguém nunca te tivesse olhado, na desatenção dos que não esperam nem concebem quem os espere, perguntava-me o que me tinha levado a construir-te com materiais tão precários e a resposta era a outra pobreza que era a minha" (p.49)

Rui Nunes, "Os Deuses da Antevéspera", 1990