fevereiro 29, 2016

fotograma de Wittgenstein (1993) de Derek Jarman
 PLAY B. Britten  Symple Symphonie 3 Mov.
 
"Designar uma coisa é pendurar-lhe uma etiqueta"
(...)
A nossa linguagem pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de travessas e largos, casas antigas e modernas e casas com reconstruções de diversas épocas; tudo isto rodeado de uma multiplicidade de novos bairros periféricos com ruas regulares e as casas todas uniformizadas.
(...)
conceber uma linguagem é conceber uma forma de vida"

Ludwig Wittgenstein (1889-1951),
Investigações Filosóficas, F. C. Gulbenkian, 2002

fevereiro 26, 2016

"É doce morrer no mar"
 
PLAY Mão Morta O Anjo do desespero

fevereiro 25, 2016


"Saber "de cor" - e que manancial de informação nesta locução - supõe a apropriação de qualquer coisa e o ser possuído pelo conteúdo do saber em questão. Quer isto dizer que autorizamos o mito, a prece ou o poema a virem implantar-se e florir no interior de nós mesmos, enriquecendo e modificando a nossa paisagem interior, tal como, por sua vez, cada uma das incursões através da vida modifica e enriquece a nossa existência. Aliás, para a filosofia e a estética antigas, a memória era a mãe das musas.
Quando a escrita levou a melhor e os livros facilitaram um tanto as coisas, a grande arte mnemónica caiu no esquecimento. A educação moderna cada vez se assemelha mais a uma amnésia institucionalizada. Deixa o espírito da criança vazio do peso das referências vividas. Substitui o saber de cor, que é também um saber de cor(ação), pelo caleidoscópio transitório dos saberes efémeros. Reduz o tempo ao instante e vai instilando em nós, até enquanto sonhamos, uma amálgama de heterogeneidade e de preguiça. Podemos afirmar que tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor - dentro dos limites das nossas faculdades sempre imprecisas - é aquilo de que verdadeiramente não gostámos. As palavras de Robert Graves mais não fazem do que dizer que "amar de cor(ação)" ultrapassa muito qualquer "amor pela arte". Saber de cor é entrar em estreita e activa relação com a essência daquilo que somos. "
George Steiner (2005)
O silêncio dos Livros, Gradiva, 2007
PLAY E la nave va

"Espreitando pelo buraco da fechadura, "Raquelle" deu o sinal: "Agora estão a falar de guerra". (...) Espreitando pelo buraco, o olhar ora recaía sobre o papel branco, ora sobre o nariz, ou passava uma grande sombra, ou brilhava um anel. A vida desmembrava-se em pormenores reluzentes; via-se o pano verde estender-se como um relvado, uma mão branca descansava sem se ver bem onde, translúcida como num museu de figuras de cera; e se olhassem muito de viés viam lá no canto a borla dourada do sabre do general. Até o mimado Solimão se mostrava impressionado. Vista através da fechadura e da imaginação, a vida assumia proporções fabulosas e inquietantes. A posição curvada fazia o sangue subir aos ouvidos, e as vozes atrás da porta ora ribombavam como blocos de rocha, ora deslizavam como sobre tábuas enceradas. Raquel ergueu-se devagar. O chão parecia levantar-se sob seus pés, e o espírito do acontecimento tomou conta dela como se tivesse metido a cabeça debaixo de um daqueles panos pretos utilizados pelos fotógrafos e pelos mágicos."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

"Os restantes participantes não se teriam mostrado tão exigentes, mas por isso mesmo também não tinham nada a opor. E era bom que a sessão terminasse com uma resolução aprovada. Com efeito, uma rixa só acaba quando a faca lhe põe o ponto final e uma peça de música quando o intérprete martela várias vezes com os dez dedos todas as teclas ao mesmo tempo; também o dançarino faz uma vénia diante da sua dama e uma reunião conclui-se com uma resolução. Seria um mundo terrível aquele em que os acontecimentos pura e simplesmente se despedissem à francesa, em vez de, no final, assegurarem mais uma vez, como deve ser, que de facto aconteceram. É por isso que as coisas se fazem assim."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

fevereiro 17, 2016

PLAY António Fragoso Nocturno

Não sei do presente:
o espelho mente,
só sei que mente.
O corpo não é meu.
A dor não é minha.
Não sei do presente,
desde o dia em que morri:
chovia,
e eu respirava-te do peito,
em silêncio, essa noite.
Não sei do presente,
mas acredito
na eternidade desse momento.
Nele viverei, eternamente,
desde o dia em que morri.
"(...)Porque não sei como dizer-te sem milagres  
que dentro de mim é o sol, o fruto,  
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,  
o amor,    

 que te procuram."
fotograma de Die Blechtromme [O tambor] (1979) de Volker Schlöndorff

fevereiro 16, 2016

fevereiro 15, 2016

PLAY Dvorak Sinfonia N.9 (Novo Mundo) - 2ªMov.

"(...) não havia outra causa para aquele fenómeno sempre repetido a que se chama nova geração, pais e filhos, revolução intelectual, estilo novo, evolução, moda e renovação. O que faz desta ânsia de renovação do ser um perpetuum mobile mais não é do que o desconforto resultante da intrusão, entre o eu próprio, nebuloso, e o eu dos predecessores, petrificado numa carapaça que nos é estranha, de um pseudo-eu, de uma alma de grupo mais ou menos ajustada. E se estivermos atentos, por pouco que seja, veremos sempre aflorar no último futuro que acabou de entrar em cena os sinais do que num próximo futuro serão os velhos tempos. As novas ideias serão apenas trinta anos mais velhas, mas apaziguadas e um pouco mais rechonchudas ou obsoletas, como o rosto radioso de uma rapariga ao lado do rosto apaziguado da mãe; ou então não tiveram êxito, mirraram e ficaram reduzidas a um qualquer projecto de reforma defendido por um velho idiota a quem uma meia centena de admiradores chama o grande Fulano."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

fevereiro 12, 2016

©Willy Ronis Venise, Fondamenta Nueva, 1959

"Mas isto ajudara Diotima a descobrir em si a conhecida doença do homem contemporâneo, a que se chama civilização. É uma condição frustrante, cheia de sabão, ondas hertezianas, a excessiva linguagem cifrada das matemáticas e da química, a economia política, a investigação experimental e a incapacidade de convivência simples mas elevada entre homens. E também as relações da nobreza de espírito, que ela conhecia, como a nobreza social, que exigiam a Diotima grande prudência e, apesar de alguns êxitos, lhe traziam grandes decepções, pareciam-lhe cada vez mais ser características não de uma época de cultura mas de um tempo de mera civilização.
     A civilização era, assim, tudo aquilo que o seu espírito se sentia incapaz de controlar. Incluindo, desde há bastante tempo, e acima de tudo, o seu próprio marido. 

      Os seus sofrimentos revelaram-lhe todo um mundo, e descobriu que tinha perdido uma coisa que até aí não sabia propriamente que tinha: uma alma.
      O que é uma alma? É fácil defini-la pela negativa: é aquilo que se esconde quando falamos de séries algébricas.
      E pela positiva? Ao que parece, ela furta-se a todas as tentativas de definição por essa via. É possível que tivesse havido em tempos em Diotima alguma coisa de primordial, uma sensibilidade intuitiva, nessa altura envolta no vestido escovado e mais que escovado da correcção, a que agora chamava alma.
(...)
Também pode ser que esse fundo primordial em Diotima seja definível de forma mais exacta como um não-sei-quê de silêncio, ternura, devoção e bondade que nunca encontrou o caminho certo e que, no cadinho do acaso em  que o destino nos molda, resultou na forma ridícula do seu idealismo."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

fevereiro 04, 2016

PLAY Madredeus O Olhar

Abraça-me o desespero só mais um dia.
Sibila-me ao ouvido mentiras e injúrias.
Eu acredito-te.
Eu acredito-te, no teu abraço.
Fecharei os olhos, para não mais abrir
o abraçar desse dia.

Parte comigo.
Abraça-me.
Sibila-me.
Eu não estranharei esse lugar
sem olhos.

volto à cegueira a reflexão sonora
há um lugar incerto onde aconteço
vou pela areia liminar de inverno
mexendo tão somente os vocativos

atei o vento à estaca de madeira
senhor de esquinas lâminas de terra
e sonhei ser ateu e a ingratidão 
descia na colina as redes de água

não vi não vejo os muros na brancura
os olhos que inventavam o aroma

pouco a pouco afasto das palavras
o som que importa
pobre de quem ouviu e não entende
pobre quem entendeu e já não ouve.     


António Franco Alexandre,  

A Pequena Face,  Assírio&Alvim, 1983

fevereiro 03, 2016

fotograma de Vício Inerente (2014) de Paul Thomas Anderson
 (Thomas Pynchon)

PLAY Can Vitamina C