"Excurso sobre o sentido do tempo"
Quando voltaram a subir ao quarto, depois do almoço, já o embrulho com as mantas se encontrava sobre uma cadeira, nos aposentos de Hans Castorp. E, nesse dia, o jovem serviu-se delas pela primeira vez - o primo, iniciado na matéria, ensinou-lhes a arte de se embrulhar, uma arte que todos ali em cima dominavam e que qualquer novato tinha de a aprender sem demora. As mantas eram estendidas, uma após a outra, sobre a cadeira de repouso, de modo a que uma boa parte delas ficasse caída sobre o chão, ao nível dos pés. Nessa altura, a pessoa sentava-se e começava a tapar-se com o cobertor de cima: primeiro puxando o cobertor a todo o comprimento até às axilas, seguidamente cobrindo os pés, o que exigia que a pessoa se curvasse e apanhasse as duas pontas dobradas, para repetir depois o processo pelo lado oposto, sendo que um embrulho perfeitamente liso e uniforme requeria que as duas pontas inferiores das mantas ficassem bem presas no rebordo da cadeira. A seguir, o mesmo método era aplicado exactamente à manta de baixo - o que implicava uma destreza algo maior e Hans Castorp, como principiante e desajeitado que era, suou e gemeu bastante, curvando e esticando o corpo uma e outra vez, à medida que ia ensaiando os movimentos que o primo lhe ensinava. Apenas meia dúzia de veteranos, explicava Joachim, eram capazes de embrulhar o corpo com as duas mantas ao mesmo tempo, aplicando três movimentos simples e certeiros. Tratava-se, porém, de uma perícia insólita e cobiçada que exigia não só longos anos de prática como também uma predisposição natural."
Thomas Mann (1924) | A montanha mágica | Dom Quixote | 2009