janeiro 29, 2017

©Thomas Dworzak | GEORGIA | Sokhumi Monkey Laboratory | 2013

PLAY Placebo | Space Monkey
were sewn together  
she’s born to mesmerize  
beside I stride her  
I die inside her

janeiro 27, 2017

©Elliott_Erwitt | ENGLAND. Brighton | 1970

PLAY Glenn Branca | Spiritual Anarchy

"Lívio (off): O meu pai era um tipo melancólico.
Caçava moscas e lia Camilo.
Morreu.
A minha mãe olhava-me com desgosto.
Sem razão. Parece-me. Não sei.
Digamos que hesito entre o mundo grave e a gravidade do mundo.
Não podes perceber.
Talvez enlouqueça o suficiente para gritar ai ai.
Um dia destes vou-me embora.
Paris, Roma, Milano, London Town, Florença, a bela, Cesário Verde, São Pettersburgo - o Mundo.
Afinal os crimes são as coisas que se repetem, etc."

in quem espera por sapatos de defunto morre descalço
João César Monteiro (1969) | Obra Escrita 1 | Letra Livre | 2014

Chet Baker - Live in '64 & '79 - Jazz Icons


janeiro 25, 2017

Lisa Dwan in "Not I" by Samuel Beckett. (Photo by Sky Arts Justin Downing)

PLAY Nick Cave and the Bad Seeds | Jesus Alone

"Meu pai envergonha-me: ousa, numa reunião em que precisamente se encontravam os Pitoëff, declamar, de mão no bolso do colete: Ser ou não ser. Não sei onde me meter.
(...)
Não me deito com homens. Fascinado, estou-o, mas apenas por mim próprio. Época de narcisismo que vai prolongar-se por muito tempo.

Descalço os sapatos e pedalo de pés nus, magoados, feliz.
(...) 
Descoberta dos banhos de água a escaldar. A cabeça anda à roda, a pele fica em carne viva, sofre-se. Limpo o vapor no espelho e masturbo-me.
(...)
Muito mais tarde voltaria a encontrar P. em Paris. Tinha acabado de casar com uma alemã, gorda, desajeitada. Abrira um consultório dentário.‹‹Estabelecia-se››.
(...)
No regresso de Breton, sou submetido ao exame do pequeno surrealista. ‹‹Qual preferes? Baudelaire ou Isidore Ducasse, conde de Lautréamont? - Baudelaire.›› Agravo o meu caso ao citar, entre os poetas contemporâneos que prefiro, Éluard e Tzara (esquecendo Breton). ‹‹Tzara! Quem aprecia os versos de um polícia pode bem ser polícia também››. Reprovado.
(...)
Paul Valéry num camarote, na companhia de uma dama elegantíssima, apupado pelos surrealistas. Entoam em coro: ‹‹Merda para Valéry››.
(...)
Irene masoquista, exibicionista. É sempre culpada, compraz-se na sua culpabilidade. Não me esconde que tem tido amantes desde que vivemos juntos. Diz-me os seus nomes (que de resto adivinhava), conta o que cada um queria dela, o que ela queria deles. Discorre com vagar sobre o seu ‹‹vício››: masturbar-se em frente dos homens, olhando-os fixamente. Mas fala-me também da ‹‹besta›› que a lançou por terra e depois possuiu. Não seria eu que faria o mesmo. As narrativas de Irene excitam-me e irritam-me ao mesmo tempo. Tão depressa murmuro: ‹‹Conta, vamos, conta mais››, como lhe faço cenas de ciúme idiotas.
(...)
É-me difícil dizer como se toldou e acabou o nosso amor, tanto quanto evocar o modo como nasceu e germinou.
(...)
Hugette, à chuva, sempre descalça. A minha boca contra os seus pés molhados; não os retira, mas com um olhar frio, sério, inquisidor, fixa-me.
(...)
Huguette decide sequestrar-me. Habito a mansarda do sexto andar que ela ocupa em casa dos pais, pequenos logistas de bijuterias na rue des Plantes. Toma conta de mim, traz-me de beber, comer, tabaco, não me falta nada, com uma condição: não devo sair. Peço a Huguette o que jamais teria ousado, nem sequer pensar, pedir a Irene: que mije em cima de mim. Aceito. Permaneço seu prisioneiro voluntário quase três semanas.
(...)
Sei o que vai fazer: levantar-se, aproximar-se, beijar-me, passar-me a sífilis. Acordo antes que se debruce sobre mim.

Janeiro de 1933. Meu pai - uma dívida de jogo, o medo do futuro sem saída? - envenena-se. Nessa noite, dormia no meu quarto, mesmo ao lado do seu, e não me apercebi de nada. Detestava o meu pai, portanto fui eu que o matei.
(...)
Terceira classe num navio brasileiro. Vai para Hamburgo, com escala no Havre. 
(...)
Pronuncio inadvertidamente uma palavra em francês, o criado do refeitório aproxima-se. ‹‹Se soubesse que falava francês, tinha-lhe arranjado lugar na mesa dos alemães.››. Raça superior, menu superior.
(...)
16 de Maio de 1941. Campo de concentração de Argèles. Calor sufocante. Em volta de uma fossa onde se amontam restos de legumes podres, seres siminus, descarnados, desdentados, empurram-se, quase lutam entre si.
(...)
1945. Paris. Tomamos conhecimento da existência dos campos de extermínio, dos fornos crematórios. (...) A partida do seu comboio para o campo. A gorda enfermeira alemã que na estação de Estrasburgo passava uma toalha pelos lábios das deportadas para lhes apagar a pintura, a vergonha.
(...)
Encontramos Artaud enfranquecido, aterrorizado. (...) No comboio de regresso, Marthe chora; juramos ambos tirar Artaud de Rodez. Conseguimo-lo, mediante uma caução de mais de um milhão de francos. Leilão conduzido por Pierre Brasseur. Doadores: Braque, Picasso, Giacometti, Sartre, Simone de Beauvoir... Sessão em benefício de Antonin Artaud. (...) Artaud, a cara percorrida por tiques, devastada, cheia de rugas, a boca desdentada, mas onde se escapava de súbito uma voz retumbante, como um uivo. Nós afogados nas suas palavras.
(...)
O suicídio de Antonin Artaud com cloral (a arma maciça).
(...) 
Também volto a ver Agathe: não mudou, continua calmamente à espera da morte. Mas agora tem uma filha, uma menina parecida com ela."

Arthur Adamov (1908 - 1969) | O homem e a Criança | Fenda | 1995
Art Spiegelman | Maus | Bertrand Editora | 2014



janeiro 19, 2017

janeiro 18, 2017

©Pedro_Luis_Raota | Argentina
PLAY Portishead | Roads

III
sente-se a lentidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;
dançam agora dois a dois,
reconstituem a unidade
cindida ainda há pouco; os pares 
mortais; a vocação
de transformar o tempo em rostos;
somam-se duas mortes
e obtém-se uma criança; ela, sim:
resistirá, crecendo,
ao desgaste do dia,
procurará na outra noite
o corpo que define o seu;
protege-a a espuma, a máscara,
até de madrugada; e então,

IV
das duas uma: reproduz-se
também; ou extingue-se em si
o fluxo da dança;
não é a conjunção dos astros
que comanda tudo,
mas a cor do céu; indecifrável;
embora alguns estudos digam
que há mutações
um resíduo verde persistente;
e outros, um halo de metal,
quase cinzento, em que repousam;
ou donde se desprendem;
certas cores intermédias;
de qualquer modo, a noite
dificulta os tons, subverte-os
sem se dar por isso;

Carlos de Oliveira (1971)  | Entre duas memórias in Trabalho Poético | Assírio&Alvim | 2003

janeiro 12, 2017

   "Reduzo as medidas a uma unidade diferente: o meu próprio passo; e mecanizo-o, para encontrar equivalências na escala métrica (sem muitos erros). 
   Planifica estes elementos: preponderância de ângulos rectos na entrada e saída de cada divisão; inflexões menos sensíveis (à esquerda e à direita) no resto dos percursos: grau oscilante, segundo o sítio dos móveis (quase todos cadeiras). Certos ângulos, pode arredondá-los, tornando a marcha menos automática (melhor, suavizando-lhe o automatismo)."

Carlos de Oliveira (1978) Finisterra | 1979 | Sá da Costa

janeiro 10, 2017

 @Toni Schneiders | Germany born 1920 – 2006 |  Self portrait | 1952

PLAY The Cure | Killing an Arab

"Ficar aqui ou partir, vinha a dar na mesma. Ao fim de alguns instantes, voltei para a praia e comecei a andar.
(...)
Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se retesou e crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da coronha, e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo se principiou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. "

Albert Camus (1949) | O Estrangeiro | Bertrand | 2006

janeiro 07, 2017

palimpsesto [2.1]

                                 Acto Primeiro (Versão 2.1)

[dois corpos celestes em decúbito dorsal, naturalmente arqueados por esfera que simula o planeta Terra, suspensa dois metros acima do solo; braços afastados do tronco, naturalmente prostrados; ecoa, ao longe, a música:
                                                  Popol Vuh | Aguirre PLAY]

π: [em voz gutural-lassa] 
  No princípio era o verbo*...

@: [com fastio]
   Sempre me (en)salsanhei entre enigmas de ovo e de galinha.

π: [mantendo o mesmo tom cavernoso]
 (No início) não existia nem o existente nem o não-existente; não existia o espaço vazio nem o céu acima dele. O que havia então?**

@: Gente não é certamente e a chuva não bate assim. Fui ver, era o ovário.***

π:  És incapaz, não és?

@: Perfeitamente!

π: Tu não tens noção. Não levas nada a sério!

@: Queres alguma coisa mais séria do que o ovário? Do ovário, nasceu o mundo. O universo é um Grande Ovário...

[entredentes, falando baixinho para não ser ouvida:]

    ...ainda por cima de uma puta que não se cansa de parir!

π: Disseste alguma coisa?

@: Não, não, esquece.

π: Mas a propósito, foi o ovo.

@: A sério?

π: Sim, houve ovos muito antes de haver galinhas, ovíparos que não eram aves.
    Queres que te faça um esquema?

@: Agora não me apetece, eu depois vou ao Google.
      Mas tu és um poço.

π: Tens razão, afundo-me com facilidade.

@: Devia levar-te mais a sério, não era?

π: A mim nem tanto, talvez a ti própria.

@: Xiuuu...

π: O que foi?

@: [sussurrando:]
  Cala-te, acho que não estamos sozinhos.

π: Como assim?

@: [tapando, a custo, cada boca com cada mão]
   Xiuuu....

[a esfera desce e os dois corpos resvalam para o solo frouxos, numa textura de lava, mantendo o decúbito supino.]

@: Esquece. Acho que estava enganada. Talvez fosse o vento.

π:  Ou Deus, ou o Grande Ovário.
    
 [π inspira profundamente, expira e aspira; senta-se, flectindo o corpo numa espécie de vénia desajeitada, e volta a deitar-se; o braço direito acompanha todo o movimento com movimentos de rotação sobre si próprio, como quem transforma uma meada de lã em novelo, mas em slow-motion]

π: Como foi a tua entrada no novo ano?

@: A mesma rotina de sempre.

π: Iniciar o ano a comer restos do ano anterior, com o estômago meio cheio, letargia total e cabeça a latejar por intoxicação de luzes, vozes e ruídos de foguetes?

@: Não. A recolher urina. Tenho uma colecção de mais de vinte exemplares das minhas primeiras urinas do ano.

π: Bem pensado, se recolhesses unhas dava-te mais trabalho.

@: Desde quando discutimos excedentes orgânicos?

π: É bom discuti-los. Fazem-nos lembrar quão igualmente limitados somos.

@: Gosto mais de ti a cagar erudição.

π: Sabes o que distingue Falar de Falhar?

@: O "H"?

π: Sim, uma simples letra: um H, de preferência mudo.

[e fez-se silêncio...  após 5 minutos de silêncio total:]

@: Estás a incomodar-me.

[π: encolhe os ombros, em silêncio, ainda]

@: A razão é mesmo uma puta que se vende por meia tuta, não é?

π: É por isso que gosto de poesia.

@: Eu detesto poesia. A tua poesia.

π: Eu sei.

@: Recita-me um poema.

[π sobe novamente para a esfera, em posição de Principezinho Saint Exusperiano, e declama profundamente]:

π:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.

Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
é pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.

Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.

Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.


@: Muito mau, mesmo!

π: Concordo, mas estavas a pedi-las. Foi por crer.

@: Agora confundes o verbo querer com crer?

π: Não!

[π escorrega novamente e junta-se a @]

π: Porquê a arroba?

@: Foi o símbolo mais próximo que encontrei para Rosapeixe.

π: Ninguém se chama assim.

@: Pois não, sou um mito da criação.
   E o teu pi?

π: De urso, então?
[os dois corpos celestes rebolam-se muito lentamente, síncronos e em uníssono, e ficam em decúbito ventral; por fim, adormecem no chão, sem ressonar]                                                <--- vasleuqaR <---
___________________________________

*Bíblia Sagrada, Evangelho Segundo S. João 1, 1

** Rgveda [10.129] Nãsadîya-Sukta "Hino da Criação" in Religiões, Edições Paulinas, 2006


***  PLAY Carlos Carrapiço - O poeta

janeiro 06, 2017

PLAY Siouxsie and the banshees | Spellbound
A trick photograph of a man holding his own head (1875) (via George Eastman House Collection)

PLAY Momus | I Love You But I Don't Need You

janeiro 05, 2017

print, ca. 1920s. On the back is written "Mrs. Conant after death"

PLAY Iggy Pop | The Passenger

janeiro 04, 2017

It's just a reflector


PLAY Arcade Fire | Reflektor
"Um homem deitou-se crente e acordou descrente. Felizmente, havia no quarto do homem uma balança decimal médica, e ele tinha o hábito de se pesar todos os dias, de manhã e à noite. Assim, pesara-se na véspera, ao deitar, e a balança marcava 4 puds e 21 libras. Na manhã seguinte, ao acordar descrente, o homem voltou a pesar-se e a balança marcava 4 puds e 13 libras. ‹‹Daqui a conclusão: a minha fé pesava aproximadamente 8 libras››, disse o homem."

Daniil Harms (Rússia, 1905-1942) | A velha e outras histórias | Assírio&Alvim | 2007
"Foi ela que me fez conhecer o amor. Ela tinha o modesto nome de Ruth, creio, mas não posso garantir. Talvez se chamasse Édith. Tinha um buraco entre as pernas, oh, não a abertura que sempre imaginara, mas uma fenda, e eu metia, de preferência, o meu membro supostamente viril lá dentro, não sem trabalho, e eu empurrava e arquejava até ao momento em que eu emitisse ou que a ela renunciasse ou que ela me suplicasse que desistisse. Um jogo estúpido, na minha opinião, e como tal cansativo, com o tempo. Mas prestava-me a ele com muito gosto, sabendo que isto era o amor, porque ela me tinha dito. " 

Samuel Beckett (1951) Molloy | Relógio d'Água | 2003

janeiro 03, 2017

PLAY Ornatos Violeta | Tanque
Estranha forma de acordar
que é estar pronto para dormir
(...) meu mal é ver que eu vou bem (...)

janeiro 02, 2017

Raquel ou Sofia?

 

Paul Valery (1871 -1945) | Fragmentos Narrativos | dois dias edições | 2016

janeiro 01, 2017

©Elliott Erwitt | 1950
PLAY Tiago Bettencourt & Dalila Carmo | Tiago na toca e os poetas "Nós somos" 


NÓS SOMOS 
Como uma pequena lâmpada subsiste
e marcha no vento, nestes dias,
na vereda das noites, sob as pálpebras do tempo.

Caminhamos, um país sussurra,
dificilmente nas calçadas, nos quartos,
um país puro existe, homens escuros,
uma sede que arfa, uma cor que desponta no muro,
uma terra existe nesta terra,
nós somos, existimos

Como uma pequena gota às vezes no vazio,
como alguém só no mar, caminhando esquecidos,
na miséria dos dias, nos degraus desconjuntados,
subsiste uma palavra, uma sílaba de vento,
uma pálida lâmpada ao fundo do corredor,
uma frescura de nada, nos cabelos nos olhos,
uma voz num portal e a manhã é de sol,
nós somos, existimos.

Uma pequena ponte, uma lâmpada, um punho,
uma carta que segue, um bom dia que chega,
hoje, amanhã, ainda, a vida continua,
no silêncio, nas ruas, nos quartos, dia a dia,
nas mãos que se dão, nos punhos torturados,
nas frontes que persistem,
nós somos,
existimos. 
António Ramos Rosa