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fevereiro 07, 2019

Acto Segundo
 [Um carro. Somos três, sem contar com o carro: eu e a minha filha, insisto, não é um erro. Não é o carro que se move, é a cena de um filme americano. O volante é exagerado, como nós. A música que ouvimos também, em volume e em sentido:]

Ain't Got No / I Got Life
Ain't got no home, ain't got no shoes, Ain't got no money, ain't got no class,
Ain't got no skirts, ain't got no sweaters, Ain't got no perfume, ain't got no love
Ain't got no faith, Ain't got no culture, Ain't got no mother, ain't got no father
Ain't got no brother, ain't got no children, Ain't got no aunts, ain't got no uncles
Ain't got no love, ain't got no mind, Ain't got no water, Ain't got no love (...)
Then what have I got Why am I alive anyway? Yeah, hell
What have I got Nobody can take away I got my hair, got my head
Got my brains, got my ears Got my eyes, got my nose
Got my mouth I got my I got myself

- Mãe, há uma coisa errada nesta música.
- Achas? Então?
- Ele disse que...
- Não é ele, é ela – corrigi- já te disse que se chama Nina Simone.
- Então, ela está errada.
- Porquê?
- Porque tu disseste que ela disse que não tem amor. E que não se importa de não ter amor. O amor é uma coisa muito importante. Não podemos viver sem amor.
A clareza de uma criança consegue ser desarmante. Continuei a conduzir, em silêncio. Tudo, naquele som, parecia milimetricamente definido: a altura, a intensidade, o timbre, a duração.
-  Mãe, conheço-te melhor do que o pai.
-  Mas o pai já me conhece há mais de vinte anos!
-  Sim, mas eu estive dentro da tua barriga. Conheço-te por dentro.
Ocorreu-me, pela nongentésima vigésima primeira vez um dos poemas mais belos que conheço:
(...) E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.
-  Lembras-te de ter estado dentro da minha “barriga”?
-  Achas, mãe?
Podias lembrar-te dos mantras que eu te cantava.
-  E a da “era uma menina muito pequenina...”, as três que me cantas todas as noites?
-   Não, essa eu não podia ter inventado antes de teres nascido – tu sabes que eu não quis saber se tinha uma menina ou um menino na barriga.
-  Sou obrigada a gostar de música, não sou?
-  Gostar só depende de ti, mas ouvir sim, enquanto viveres comigo não tens como fugir a essa realidade.
-  Eu gosto, mãe, gosto muito. Queres jogar um jogo, o "se fosses"? Começa tu. 
- Se fosses uma música?
-Era a do coelhinho com a bengala. Porque como está com a bengala o professor João deixa-me tocar mais lento.
- E se fosses uma nota?
- Seria a tónica - porque seria sempre a primeira.
- Se fosses uma escala?
- Seria maior, claro, é a mais alegre.
- Se fosses uma dinâmica?
- O piano, por ser um instrumento também.
- Se fosses um compositor?
- Seria o Bach, para ser ribeiro. E tu, mãe, se fosses um instrumento?
- Seria um cordofone porque nas cordas o mais importante não é a força que usas mas o tamanho e a tensão.
- E se fosses uma coisa qualquer da música?
- Eu? Seria a melodia porque mantinha a minha identidade apesar das transformações que pudessem ocorrer.


[Vê-se o carro ao longe, ouvem-se rastos de conversa, já imperceptíveis. Na tela projectam-se palavras:


o prelúdio é sempre breve
só quando dói é em ostinato,
sem variação ou fuga possível 

**********
Escolhemos o segredo dos lamentos,
das descidas cromáticas
que adensam a beleza de tudo o que nos dói.
Inventamos escalas
que nos sustentam os sorrisos modelados,
enquanto nos distraímos em infinitos círculos.
Degrau a degrau,
corrigimos a sombra dos passos,
prevemos as quedas.
   [e escolhemos cair]
 

[Cai o pano. É o final do acto segundo.]

julho 11, 2018

[#1]

Acto Primeiro
[Somos três: eu e a minha filha (não, não é um erro ou lapso de aritmética). Não raras vezes, não descubro as fronteiras nessa topologia tão própria.]


- Fizeste ontem, na tua escola?
-  Sim, das 18:35 às 19:11.
-  Somos nós, não somos?
-  Achas que estamos parecidas?
-  Não sei, o teu cabelo está muito comprido. É impossível, um cabelo assim.
-  Isso é... expansão figurativa.
-  Estás sempre a usar palavras esquisitas.
-  Mas diz, o que achas, parecemos nós?
- Estamos de mão dada, parecemos muito calmas [Riqueza expressiva – interrompeu, em silêncio, sempre a lutar pela razão], talvez, sim... mas gosto do teu cinto.
-  Não foi fácil resistir ao fecho, temos sempre tendência a fechar, a fechar tudo. Fechar não é bom.
-  Eu não gosto da porta do meu quarto fechada, quando vou dormir.
-  Isso é porque ainda tens muita fantasia.
-  Como a clave de sol no teu cabelo?
-  Não, essa foi só para revelar a minha perfeita inabilidade gráfica e fraca elaboração, que é como quem diz, um ato desesperado para arranjar conectividade.
-  Não sei, pareço mais alta do que sou, de verdade.
-  Afinal estou enganada, acho que o teu alcance imaginário não está assim tão apurado, não vês que a morfologia da imagem não foi uma prioridade?
-  O que eu vejo é que andas a passar demasiado tempo com o Beckett  e pouco comigo.
-  Talvez tenhas razão, mas “tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor"[1] é uma filosofia de vida que me agrada.
-  Heit! Estava a falar do Beckett - o cão. Falando nisso, vou brincar com ele, é menos chato do que tu. Tchau...
[Melhor assim, eu só deveria entrar no Acto Terceiro, mas sei lá,
“O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.[2]”]
Nunca tinha pensado assim. Não sabia, sequer, da existência de indicadores de criatividade. Sempre imaginei que a arte de mensurar estivesse confinada ao capítulo de Geometria e Medida, dos alfarrábios do meu mundo concreto, mas Torrance diz o contrário. Não sei, estava cansada, a razão cansa, cansa muito. Só sei que a quantidade já me pesava – lidar com números a vida toda, é coisa para se passar a ser quadrado. Por isso, não queria acreditar que também ali houvesse indicadores. “Deixa o cão ser cão” - pensei para mim - como se a arte fosse um acaso, como se o Estilo Criativo fosse um sopro divino e não nascesse do binómio criador-destruidor, na figura do lápis e da borracha, como quem se torna resolvedor proficiente de equações de 3º grau. Não. Não queria razão na arte, se era lá que encontrava refúgio de um mundo cansado de racionalizar, queria a ingenuidade de Jonas, duvidar da intenção no ato da criação, negar os seus discípulos quando estes lhe explicavam “demoradamente o que ele pintara, e porquê.” para não ter de descobrir, como Jonas, “muitas intenções [nas suas obras] que o surpreenderam um pouco, e uma quantidade de coisas que ele não pusera lá”[3]. Queria esse espaço sem razão entre mim e as coisas, não ter de arranjar medidas ou justificações porque acreditava que “aquilo que me faz é o que a mim própri[a] trago de desconhecido”[4] Queria negar-me às etiquetas bergsonianas[5] que colamos sobre as coisas que nos impedem, tantas vezes de as ver. Mas o desenho estava ali, tinham-me sido dadas as directrizes para me auto-avaliar: que indicadores de criatividade eu cumpriria?; Que papel podia desempenhar aquele desenho, feito por mim em 36 minutos?; Que diria de mim? Que diria de mim na relação com o mundo? Ou, pior, na relação com a realidade, como me tinha proposto reflectir?. A Beatriz reconheceu-nos nos rabiscos – a mim e à minha filha. Alguma realidade ele traduziria. Mas a Beatriz percebe das coisas de ser humano, entende de ser mãe, ela é como as mães de Daniel Faria - respira à janela do seu filho.
Mas como não pensar como Musil[6], achando que a razão não era a única forma de dois seres se entenderem, e negar-me por inteiro, ali? Não cedi à teimosia a que me habituei a mim própria, procurei, procurei e encontrei sentido. Não no meu desenho, propriamente, mas no ato de encontrar sentido, de encontrar as características que o permitissem crescer, como a expressividade ou o controlo da composição, ferramentas de expressão da emoção humana. Sim, o homem é um ser contraditório, que se contradiz, o “homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese”[7].
E eu podia, podia habituar-me a um meio termo, se houvesse um pretexto – analisar o meu desenho para o tornar melhor, aceitar dele o que ele pudesse dar de mim, num diálogo sério, firmado num compromisso de zelo sem excesso. Não queria sofrer da patologia da razão, antes sofrer do meio termo a que sempre me houvera negado, aceitando que uma parte do real é irracionalizável,  e que a racionalidade se encarrega de dialogar com o irracionalizável[8].
Olhei para o desenho, e senti leveza. E deixei-me levar na leveza que ele teve em mim. 

- Mãe, o Beckett está a morder-me.
- A mim também já me morde há uns anos.
- Há uns anos? Mas ele não tem sequer um ano!
- Pois não.
A minha filha olha, atenta, para o desenho uma vez mais:
 - Eu desenho melhor do que tu.
- Sim, o teu traço tem melhor elaboração do que o meu. Bem sabes que, com muita pena minha, tenho dificuldades em expressar-me pelo desenho, pela pintura, o melhor que sei é pintar o mundo com as palavras.
- Como naquele teu poema que escreveste há uns tempos, para a tua amiga pintora?
- Eu não escrevo poemas, só escrevinho. Mas sim, por exemplo.
- Pode ler-mo? Gosto de te ouvir ler, como quando fazias quando eu era pequenina, com o livro grande da Sophia.
- Estás a falar daquele de pintar o mundo?
- Sim, esse.
- Acho que sei-o de memória:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.
Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.
Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.
Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.
- Eu não percebo muito bem o que dizes, mas gosto de te ouvir. E também gosto de pintar com branco.
- Faz-nos sentir a urgência do preto. Sem preto não pode existir o branco. O que é engraçado porque li algures que o branco representa a perfeição e o amor divino e que o preto é “como uma capa de aço, onde aquilo que está lá dentro não sai.”. Gosto dessa ideia- se pintares o teu branco sobre o meu preto, jamais a perfeição e o amor divino sairão dele.
- Eu gosto de desenhar cães. Começo pelos sinais dos bigodes.
- E eu gosto que não comeces pelo óbvio – nunca vi ninguém a desenhar cães, começando pelos sinais.
- Queres que te desenhe um?
- Pode ser.
- De que cor?
- Tu já sabes.
- Violeta, claro.
- Pois. Mas sabes que as cores não existem propriamente?
- Deixa-me desenhar em paz, mãe.
- A minha professora disse-me que “a cor é um fenómeno fisiológico, de carácter subjectivo e individual (...) são tentativas de organizar informações sobre a percepção cromática humana"
- Tu confundes-me, às vezes. Não pareces nada uma professora de Matemática.
- É tudo uma questão de linguagem. Não interessa a que escolhes, mas o modo como te entregas a ela. Eu posso tomar por “empréstimo as convenções da inferência e da dedução matemáticas[9]” ou   reduzir “as medidas a uma unidade diferente: o meu próprio passo; e mecanizá-lo, para encontrar equivalências na escala métrica (sem muitos erros).”[10] , o importante é que eu saiba traduzir o vazio que há entre mim e as coisas. Porque é nesse espaço vazio que me permito ser.
- Porquê?
- Já tinha de vir o porquê.
- Tenho seis anos, mãe. Tenho de desenhar cães com bigodes e perguntar-te mil vezes porquê.
- Porquê, o quê?
- Nada. Gostas do meu cão?
- Adoro a coleira.
- Mas eu não desenhei nenhuma.
- Pois não – sorri.
Saímos para passear o cão Beckett, não sem antes darmos um abraço profundo, nascido do nada. Lembrei-me de Beckett, o escritor: "Por vezes, há coisas que se impõem ao entendimento com a força de axiomas, sem que se saiba porquê." [11].

[A noite cerrou o dia. O branco do preto escureceu no pano do palco. Terminou o Acto Primeiro]


[1] Samuel Beckett (1990). Últimos trabalhos de Samuel Beckett. Lisboa: Assírio & Alvim [p.7]
[2] Daniel Faria (2006). Poesia. Lisboa: Quasi Editores. [p. 157]
[3] Albert Camus (s/d). Jonas. In: A. Camus, O Exílio e o Reino (pp. 121-171). Lisboa: Edições Livros do Brasil.[p.139]
[4] Paul Valéry (1985). O Senhor Teste. Lisboa: Relógio  [p.54] 
[5] Henri Bergson (1991). O riso. Lisboa: Relógio D'Água. [p.99] 
[6] Robert Musil (2014). O Homem sem Qualidades. Lisboa: Dom Quixote.
[7] Soren Kierkegaard, S. (1979). O desespero humano. Lisboa: Livraria Tavares Martins. [p.38]
[8] Edgar Morin (2008). Introdução ao Pensamento Complexo (5.ª ed.). Lisboa: Instituto Piaget. [p.23]
[9] George Steiner(2014). Linguagem e Silêncio - ensaios sobre a literatura, a linguagem e o inumano. Lisboa: Gradiva.
[10] Carlos Oliveira (1979). Finisterra. Lisboa: Sá da Costa.
[11] Samuel Beckett (2003). Molloy. Relógio D'Água.