julho 11, 2018

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Acto Primeiro
[Somos três: eu e a minha filha (não, não é um erro ou lapso de aritmética). Não raras vezes, não descubro as fronteiras nessa topologia tão própria.]


- Fizeste ontem, na tua escola?
-  Sim, das 18:35 às 19:11.
-  Somos nós, não somos?
-  Achas que estamos parecidas?
-  Não sei, o teu cabelo está muito comprido. É impossível, um cabelo assim.
-  Isso é... expansão figurativa.
-  Estás sempre a usar palavras esquisitas.
-  Mas diz, o que achas, parecemos nós?
- Estamos de mão dada, parecemos muito calmas [Riqueza expressiva – interrompeu, em silêncio, sempre a lutar pela razão], talvez, sim... mas gosto do teu cinto.
-  Não foi fácil resistir ao fecho, temos sempre tendência a fechar, a fechar tudo. Fechar não é bom.
-  Eu não gosto da porta do meu quarto fechada, quando vou dormir.
-  Isso é porque ainda tens muita fantasia.
-  Como a clave de sol no teu cabelo?
-  Não, essa foi só para revelar a minha perfeita inabilidade gráfica e fraca elaboração, que é como quem diz, um ato desesperado para arranjar conectividade.
-  Não sei, pareço mais alta do que sou, de verdade.
-  Afinal estou enganada, acho que o teu alcance imaginário não está assim tão apurado, não vês que a morfologia da imagem não foi uma prioridade?
-  O que eu vejo é que andas a passar demasiado tempo com o Beckett  e pouco comigo.
-  Talvez tenhas razão, mas “tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor"[1] é uma filosofia de vida que me agrada.
-  Heit! Estava a falar do Beckett - o cão. Falando nisso, vou brincar com ele, é menos chato do que tu. Tchau...
[Melhor assim, eu só deveria entrar no Acto Terceiro, mas sei lá,
“O absurdo pode sempre visitar-te quando quiser
Tens um lugar para ele. Em cada dia uma nova entrada.[2]”]
Nunca tinha pensado assim. Não sabia, sequer, da existência de indicadores de criatividade. Sempre imaginei que a arte de mensurar estivesse confinada ao capítulo de Geometria e Medida, dos alfarrábios do meu mundo concreto, mas Torrance diz o contrário. Não sei, estava cansada, a razão cansa, cansa muito. Só sei que a quantidade já me pesava – lidar com números a vida toda, é coisa para se passar a ser quadrado. Por isso, não queria acreditar que também ali houvesse indicadores. “Deixa o cão ser cão” - pensei para mim - como se a arte fosse um acaso, como se o Estilo Criativo fosse um sopro divino e não nascesse do binómio criador-destruidor, na figura do lápis e da borracha, como quem se torna resolvedor proficiente de equações de 3º grau. Não. Não queria razão na arte, se era lá que encontrava refúgio de um mundo cansado de racionalizar, queria a ingenuidade de Jonas, duvidar da intenção no ato da criação, negar os seus discípulos quando estes lhe explicavam “demoradamente o que ele pintara, e porquê.” para não ter de descobrir, como Jonas, “muitas intenções [nas suas obras] que o surpreenderam um pouco, e uma quantidade de coisas que ele não pusera lá”[3]. Queria esse espaço sem razão entre mim e as coisas, não ter de arranjar medidas ou justificações porque acreditava que “aquilo que me faz é o que a mim própri[a] trago de desconhecido”[4] Queria negar-me às etiquetas bergsonianas[5] que colamos sobre as coisas que nos impedem, tantas vezes de as ver. Mas o desenho estava ali, tinham-me sido dadas as directrizes para me auto-avaliar: que indicadores de criatividade eu cumpriria?; Que papel podia desempenhar aquele desenho, feito por mim em 36 minutos?; Que diria de mim? Que diria de mim na relação com o mundo? Ou, pior, na relação com a realidade, como me tinha proposto reflectir?. A Beatriz reconheceu-nos nos rabiscos – a mim e à minha filha. Alguma realidade ele traduziria. Mas a Beatriz percebe das coisas de ser humano, entende de ser mãe, ela é como as mães de Daniel Faria - respira à janela do seu filho.
Mas como não pensar como Musil[6], achando que a razão não era a única forma de dois seres se entenderem, e negar-me por inteiro, ali? Não cedi à teimosia a que me habituei a mim própria, procurei, procurei e encontrei sentido. Não no meu desenho, propriamente, mas no ato de encontrar sentido, de encontrar as características que o permitissem crescer, como a expressividade ou o controlo da composição, ferramentas de expressão da emoção humana. Sim, o homem é um ser contraditório, que se contradiz, o “homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade, é, em suma, uma síntese”[7].
E eu podia, podia habituar-me a um meio termo, se houvesse um pretexto – analisar o meu desenho para o tornar melhor, aceitar dele o que ele pudesse dar de mim, num diálogo sério, firmado num compromisso de zelo sem excesso. Não queria sofrer da patologia da razão, antes sofrer do meio termo a que sempre me houvera negado, aceitando que uma parte do real é irracionalizável,  e que a racionalidade se encarrega de dialogar com o irracionalizável[8].
Olhei para o desenho, e senti leveza. E deixei-me levar na leveza que ele teve em mim. 

- Mãe, o Beckett está a morder-me.
- A mim também já me morde há uns anos.
- Há uns anos? Mas ele não tem sequer um ano!
- Pois não.
A minha filha olha, atenta, para o desenho uma vez mais:
 - Eu desenho melhor do que tu.
- Sim, o teu traço tem melhor elaboração do que o meu. Bem sabes que, com muita pena minha, tenho dificuldades em expressar-me pelo desenho, pela pintura, o melhor que sei é pintar o mundo com as palavras.
- Como naquele teu poema que escreveste há uns tempos, para a tua amiga pintora?
- Eu não escrevo poemas, só escrevinho. Mas sim, por exemplo.
- Pode ler-mo? Gosto de te ouvir ler, como quando fazias quando eu era pequenina, com o livro grande da Sophia.
- Estás a falar daquele de pintar o mundo?
- Sim, esse.
- Acho que sei-o de memória:
Pintar o mundo é escrever o orto do elemento,
é fabricar o pigmento primário:
da textura da terra;
do aroma da água;
da aurora do fogo;
na distância do ar.
Pintar o mundo é erguer a essência da mão
ao fulgor do éter,
pintar de branco e dar cor,
é lançar a vogal à terra e amanhá-la.
Pintar o mundo é beber do silêncio,
com que se desenha o poema e escreve a pintura.
Pintar o mundo é abrir a mão à paisagem
e confiar que tudo, nela, se transfigura.
- Eu não percebo muito bem o que dizes, mas gosto de te ouvir. E também gosto de pintar com branco.
- Faz-nos sentir a urgência do preto. Sem preto não pode existir o branco. O que é engraçado porque li algures que o branco representa a perfeição e o amor divino e que o preto é “como uma capa de aço, onde aquilo que está lá dentro não sai.”. Gosto dessa ideia- se pintares o teu branco sobre o meu preto, jamais a perfeição e o amor divino sairão dele.
- Eu gosto de desenhar cães. Começo pelos sinais dos bigodes.
- E eu gosto que não comeces pelo óbvio – nunca vi ninguém a desenhar cães, começando pelos sinais.
- Queres que te desenhe um?
- Pode ser.
- De que cor?
- Tu já sabes.
- Violeta, claro.
- Pois. Mas sabes que as cores não existem propriamente?
- Deixa-me desenhar em paz, mãe.
- A minha professora disse-me que “a cor é um fenómeno fisiológico, de carácter subjectivo e individual (...) são tentativas de organizar informações sobre a percepção cromática humana"
- Tu confundes-me, às vezes. Não pareces nada uma professora de Matemática.
- É tudo uma questão de linguagem. Não interessa a que escolhes, mas o modo como te entregas a ela. Eu posso tomar por “empréstimo as convenções da inferência e da dedução matemáticas[9]” ou   reduzir “as medidas a uma unidade diferente: o meu próprio passo; e mecanizá-lo, para encontrar equivalências na escala métrica (sem muitos erros).”[10] , o importante é que eu saiba traduzir o vazio que há entre mim e as coisas. Porque é nesse espaço vazio que me permito ser.
- Porquê?
- Já tinha de vir o porquê.
- Tenho seis anos, mãe. Tenho de desenhar cães com bigodes e perguntar-te mil vezes porquê.
- Porquê, o quê?
- Nada. Gostas do meu cão?
- Adoro a coleira.
- Mas eu não desenhei nenhuma.
- Pois não – sorri.
Saímos para passear o cão Beckett, não sem antes darmos um abraço profundo, nascido do nada. Lembrei-me de Beckett, o escritor: "Por vezes, há coisas que se impõem ao entendimento com a força de axiomas, sem que se saiba porquê." [11].

[A noite cerrou o dia. O branco do preto escureceu no pano do palco. Terminou o Acto Primeiro]


[1] Samuel Beckett (1990). Últimos trabalhos de Samuel Beckett. Lisboa: Assírio & Alvim [p.7]
[2] Daniel Faria (2006). Poesia. Lisboa: Quasi Editores. [p. 157]
[3] Albert Camus (s/d). Jonas. In: A. Camus, O Exílio e o Reino (pp. 121-171). Lisboa: Edições Livros do Brasil.[p.139]
[4] Paul Valéry (1985). O Senhor Teste. Lisboa: Relógio  [p.54] 
[5] Henri Bergson (1991). O riso. Lisboa: Relógio D'Água. [p.99] 
[6] Robert Musil (2014). O Homem sem Qualidades. Lisboa: Dom Quixote.
[7] Soren Kierkegaard, S. (1979). O desespero humano. Lisboa: Livraria Tavares Martins. [p.38]
[8] Edgar Morin (2008). Introdução ao Pensamento Complexo (5.ª ed.). Lisboa: Instituto Piaget. [p.23]
[9] George Steiner(2014). Linguagem e Silêncio - ensaios sobre a literatura, a linguagem e o inumano. Lisboa: Gradiva.
[10] Carlos Oliveira (1979). Finisterra. Lisboa: Sá da Costa.
[11] Samuel Beckett (2003). Molloy. Relógio D'Água.