setembro 29, 2015

PLAY Pēteris Vasks - Vox Amoris Chaarts  - Sebastian Bohren Fantasie für Violine und Streicher

DE TODAS AS FERIDAS
Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
Só uma vez no Outono a pedra reverdece - foi ontem;
foi quando o sal nas ruas era tão vermelho,
tão vermelho que se pensaria que era chegada a hora
a que se acena com os véus da meia-noite:
o tempo-de-tulipas dessa hora
em que o desejo enche o copo de toda a gente,
o berço e o caixão de toda a gente,
as pegadas de toda a gente,
a hora que liberta o gelo do teu olhar,
te faz arregaçar a tua sombra
e arranca aos sinos o seu silêncio quando danças.

Lança-me aos pés do coração a luva do silêncio:
foi ontem
e jaz no sangue como nós dois.

Paul Celan
A morte é uma flor, Cotovia, 1998

setembro 27, 2015

©Harry Gruyaert. Mali. Town of Gao. 1988. Terrace of a local hotel.

PLAY PJ Harvey The dancer

MOLDURA VAZIA
Em toda a parte te encontro ansiando por emoldurar
Uma parte modesta da Sua imensidade,
Significando, suponho, uma data de céu
Da variedade azul e sem nuvens,
Sobre o velho cemitério, por exemplo,
Ou sobre a nova lixeira da cidade
Além da qual fica um campo e três espantalhos.

Um deles podia ser monge alemão, Eckkart,
Dizendo: "Se alguém nada procura,
Que direito tem a queixar-se de nada achar?"
Certo. Não havia um único melro
Vigiando o milho verde,
Por isso elevámos um pouco a moldura
Até onde o silêncio diz tudo.

Charles Simic (1938-2023)
Previsão de tempo para utopia e arredores, Assírio&Alvim, 2002

setembro 26, 2015

[#1] De ler alto

  "Vendo-se sozinho, sem nada de especial que fazer, Watt meteu o indicador no nariz, primeiro na narina esquerda, depois na narina direita. Mas, esta noite, não havia macacos no nariz de Watt.
    Passados breves momentos, porém, o cavalheiro reapareceu, a Watt. Vinha com roupa de viagem e trazia bengala! Mas nenhum chapéu na cabeça, nem nenhuma mala na mão.
    Antes de sair, fez a seguinte breve declaração.
   Oh! Veio tudo ter comigo outra vez, não há dúvida. Esse olhar! Esse desperto vazio cansado! O homem chega! Trazendo atrás dele todos os caminhos escuros, todos, todos dentro dele, os longos caminhos escuros, na sua cabeça, aos seus flancos, nas suas mãos e pés, e fica sentado no lusco-fusco vermelho, de dedo no nariz, à espera de que rompa a aurora. A aurora! O sol! A luz! Ah! Os longos dias azuis para a cabeça dele, para os seus flancos, e os estreitos trilhos para os seus pés, e toda a claridade para tocar e colher. Pela erva fora os estreitos caminhos musgosos, ossudos das raízes velhas, e as árvores espetadas, e as flores espetadas, e os frutos pendentes, e as borboletas brancas exaustas, e os pássaros sempre diferentes, voando como flechas a esconder-se. E todos os sons, que não significam nada. E, depois, à noite, o descanso da casa quieta, deixa de haver estradas, deixa de haver ruas, refugiamo-nos deitando-nos junto à abertura duma janela, chegam os pequenos sons que não pedem nada, não mandam nada, não explicam nada, não propõem nada, e a curta necessária noite vai acabar já, e o céu azul de novo vai vir sobre todos os lugares secretos sempre diferentes, mas sempre simples e indiferentes, sempre meros lugares, sítios de um frémito para lá do ir e vir, de um ser tão ligeiro e livre que é como o ser do nada. Como eu sinto tudo isso de novo, passado tanto tempo, aqui, aqui, e aqui, e nas minhas mãos, e nos meus olhos, como uma face erguida, uma face oferecida, toda confiança e inocência e candura, todo o velho solo e medo e fraqueza que se oferecem, para serem enxaguados com uma esponja e perdoados! Ah! Ou nunca senti isso até agora? Agora, que já não há garantias? Não me surpreenderia. Tudo perdoado e curado. Para sempre. Num momento. Amanhã. Seis, cinco, quatro horas ainda, da velha escuridão, do velho fardo, a clarear, a clarear. É que veio alguém, para ficar. Ah! Todos os velhos tempos conduziram a isto, todos os velhos meandros, as escadas sem um único patamar para uma pessoa se alçar, agarrando-se ao corrimão, contando os passos, a febre dos caminhos mais curtos por sob as longas pálpebras do céu, os caminhos bravios dos campos em que os nossos mortos caminham junto a nós, no cascalho escuro a última curva que se dobra de novo para a pequena cidadezinha, os encontros que cumprimos e os encontros a que faltámos, todas as delícias da mudança de lugar, urbana e rural, todos os existus e redditus,  encerrados e terminados. tudo conduzindo a isto, a este crepúsculo em que um homem de meia-idade está sentado a masturbar a bicanca, esperando o romper da aurora. (...)"

Samuel Beckett (1953)
Watt,  Assírio&Alvim, 2005

©Julia Margaret Cameron (1815 -1879)
Portrait of Julia Prinsep Jackson. Cameron's niece and mother of the author Virginia Woolf]

Acordei com medo de não ser sábado:
manhã do rímel retardado e do lápis esbatido.
Enquanto não for domingo,
adormeço neste sábado
onde me abrigo e me esqueço,
sofro e enlouqueço.

Sábado é dia de ser real,
manhã do baton que já foi,
resquícios da base que já nada esconde.

Sábado é dia de ser -
de ser hoje tão imperfeitamente eu.

Acordei com medo de não ser sábado - mas sou.
"ONDE cheirar a merda
cheira a ser.
O homem podia muito bem deixar de cagar,
deixar de abrir a bolsa anal,
mas preferiu cagar
como poderia ter preferido viver
em vez de consentir em viver morto.

É que para não fazer cócó
teria que aceder
a não ser,
mas ele é que não foi capaz de se resolver a perder o ser,
isto é a morrer vivo.

Existe no ser 
algo particularmente tentador para o homem
algo que vem a ser justamente 
         O CÓCÓ
          (aqui rugido.)

Para existir basta que se condescenda em ser
mas para viver
é preciso ser alguém
é preciso ter OSSOS,
não ter medo de mostrar os ossos,
e de caminho perder a carne.

O homem sempre gostou mais da carne
do que da terra dos ossos.
É porque só o que havia era terra e madeira de ossos
e ele viu-se obrigado a ganhar a sua carne,
só o que havia era ferro e fogo
e merda não,
e o homem teve medo de ficar sem merda
ou antes desejou a merda
e para isso sacrificou o sangue.

Para ter merda,
quer dizer, carne,
ali onde só o que havia era sangue
e um ferro-velho de ossadas
e onde nada se ganhava em ser
mas onde só restava perder a vida
     o reche modo
     to edire
     de za
     tau dari
    do padera coco

Retirou-se o homem então, e fugiu.
E então os bichos comeram-no.

Não foi uma violação,
ele prestou-se a esse obsceno repasto.
(...)"

Antonin Artaud (1948)
Para Acabar de vez com o juízo de Deus, &etc.

[#1] Síndrome de Estocolmo

©Robert Demachy - Struggle, 1904
PLAY Radiohead Paranoid Android

 P r i s ã o     q u e     r e n d e

setembro 22, 2015

[#2] manual de sobrevivência

©raquelsav. 21 setembro 2015




Quando espíritos grandes se revelam, simplesmente...

setembro 15, 2015

Joan Vilatobà. En quin punt del cel et trobaré?, circa 1903-1904© Hereus de Joan VilatobàCortesía Galería A34

"Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que mais de uma vez estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas, jogámos tanto que para não nos perdermos arriscámos tudo, até tornarmos a morte uma coisa nossa, tão nossa que é ela que anda agora vestida com a nossa pele e os nossos ossos, escorregando pelas paredes de cabeça p'ra baixo ou subindo pelo interior dos bicos, olhando do alto o sangue que ficou no centro, entre os carris, passando de cadafalso em cadafalso com os lábios furados pelas unhas, com a cintura roxa das dentadas da noite, da miséria dos dias."

António José Forte (1983)
Uma Faca nos Dentes,  Parceria A. M. Pereira, 2003
"Mas aqui estava outra coisa que Watt nunca havia de saber, por não ter prestado a devida atenção ao que se passava à sua volta. Não é que esse conhecimento fosse de algum préstimo para Watt, ou de algum dano, ou lhe causasse algum prazer, ou algum desprazer, que não era nada disso. Mas achou estranho pensar nessas pequenas mudanças, os pequenos ganhos, as pequenas perdas, as coisas que se acrescentam, as coisas que se tiram, a luz dada, a luz tirada, e todas as vãs oferendas à hora, estranho pensar em todas essas pequenas coisas que se agregam ao que chega, ao que está, ao que se vai, estranho não saber nada delas, nada das que existiam desde que ele existia, nada do momento em que tinham vindo, e de como tinham vindo, e como era tudo então comparado com o antes, nada do tempo que tinham perdurado, e como tinham perdurado, e que importava isso, nada do momento em que se tinham ido, e de como tinham ido, e de como era tudo então comparado com o antes, antes de terem vindo, antes de terem ido."

Samuel Beckett (1953)
Watt, Assírio&Alvim, 2005

setembro 07, 2015

©Daniel Blaufuks
    "Não basta ser sincero. Não basta ser sincero uma vez, mas sempre. Para que a nossa vida não fique sendo apenas o reflexo de determinado momento em que fomos sinceros. São tão diferentes as idades da vida de cada um que quem não vai por essa diferença é porque parou numa delas. As idades da vida não se passam por alto: ou se vivem ou ficam por viver. Ou se gasta a sinceridade de cada idade da vida, ou ela toma o incremento de um organismo dentro do nosso organismo, uma excrescência, uma protuberância, um tumor, um tumor maligno, ruim, um cancro!
    Não basta ser sincero toda a vida. Depois de tudo ainda é necessário que a nossa sinceridade seja perigosa. Perigosa para o mesmo e para a sociedade. Não deixemos a sociedade assentar arraiais sem primeiro ter reconhecido pessoalmente a cada um. A ver se, por fim, ela deixa de se ofender com o nosso sincero caso pessoal. A ver se ela acaba por uma vez com aquilo de dar mostras bem duras de ter ficado ofendida com a nossa sinceridade. Ou terá de ser sempre assim? Para ela, a nossa sinceridade será sempre a impertinência de um extraviado, a loucura de um isolado?!"

José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004

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"Sentir-se próximo dos que veem, não porque começa a ver mas porque os arrasta - aos que veem - para o campo onde todos são cegos."

Gonçalo M. Tavares (2010)
Matteo perdeu o emprego, Porto Editora, 2010

"É a sensação mais horrorosa que possa imaginar-se aparecer de repente a verdade a uma pessoa que faz por iludir-se. O Antunes desejava que a festa tivesse ainda mais brilho, mais artifício, mais música, mais barulho, mais fantasia, mais vertigem. Ele queria a verdadeira mentira, essa que vale tanto de noite como a verdade de dia. Mas por mais que fizesse não conseguia deixar de ver diante de si em todos os homens e em todas as mulheres caricaturas grotescas, estrangeiras, tortas, incompreensíveis, inúteis, vivas, em carne e osso, como gente, hediondas, malditas, metamorfoses que não prosseguem, que ficam informes, aos pedaços, mal feitas, mal fabricadas, erradas, empecilhos, envenenadores da memória, mascarados, oiro de cenografia vista ao pé, papelão a fingir carne, barato e sem ilusão. Eles tinham esgotada a imaginação: incapazes de ironia e de optimismo, esmagados pela realidade, esborrachados pela vida, impossibilitados, estampados, inválidos, parados. Nem verdade nem mentira, nada! Nem desequilíbrio nem erro, nada! Bonecos, fantoches, sem saída, corpos sem alma, almas que morreram primeiro do que os corpos! Gente que ia de passagem e ali ficou para sempre. Copiam, repetem, imitam, representam, mas de repente a sina escurece outra vez. Ficam os foles em vez da respiração."


José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004
©raquelsav2015.Set. Fuente Dé

P   A   Z

rima com

F   U   G   A   Z