setembro 07, 2015


"É a sensação mais horrorosa que possa imaginar-se aparecer de repente a verdade a uma pessoa que faz por iludir-se. O Antunes desejava que a festa tivesse ainda mais brilho, mais artifício, mais música, mais barulho, mais fantasia, mais vertigem. Ele queria a verdadeira mentira, essa que vale tanto de noite como a verdade de dia. Mas por mais que fizesse não conseguia deixar de ver diante de si em todos os homens e em todas as mulheres caricaturas grotescas, estrangeiras, tortas, incompreensíveis, inúteis, vivas, em carne e osso, como gente, hediondas, malditas, metamorfoses que não prosseguem, que ficam informes, aos pedaços, mal feitas, mal fabricadas, erradas, empecilhos, envenenadores da memória, mascarados, oiro de cenografia vista ao pé, papelão a fingir carne, barato e sem ilusão. Eles tinham esgotada a imaginação: incapazes de ironia e de optimismo, esmagados pela realidade, esborrachados pela vida, impossibilitados, estampados, inválidos, parados. Nem verdade nem mentira, nada! Nem desequilíbrio nem erro, nada! Bonecos, fantoches, sem saída, corpos sem alma, almas que morreram primeiro do que os corpos! Gente que ia de passagem e ali ficou para sempre. Copiam, repetem, imitam, representam, mas de repente a sina escurece outra vez. Ficam os foles em vez da respiração."


José de Almada Negreiros (1938)
Nome de Guerra, Assírio&Alvim, 2004