dezembro 31, 2015


PLAY The Doors People are Strange

LARANJA COR DE SANGUE
Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.

Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisamos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque 
Cair no chão rachada ao meio.

Charles Simic (1938 - )
Previsão de tempo para utopia e arredores, Assírio&Alvim, 2002

"Entretanto, tinha andado pelo mundo, por vezes também, por curtos períodos de tempo, no seu país, fazendo coisas importantes, mas igualmente inúteis. Já demos a entender que era matemático, e mais não é preciso dizer sobre o assunto, pois em todas as profissões, quando não as exercemos por dinheiro, mas por amor, chega um momento em que o avançar dos anos nos parece levar a um vazio."

Robert Musil (1880-1942)
O Homem sem Qualidades, Dom Quixote, 2014 (4.ª Ed.)
(Trad. João Barrento)

dezembro 29, 2015


"o meu tédio é igual, o meu desejo de solidão idêntico, a minha ânsia de silêncio a mesma, quero simultaneamente que me deixem em paz e não me deixem em paz, que me amem e não me amem, que me chamem e me esqueçam"

António Lobo Antunes (1983)
Explicação dos pássaros

dezembro 23, 2015

"Vou-me embora, adeus, ou fico, qual é a alternativa, ir para onde, serei mais feliz sozinho, conseguirei alguma vez ser feliz com esta inquietação de sempre nas tripas, esta espécie de colite da alma, este desassossego de entranhas, rodo o botão do som, a adesão de Portugal ao Mercado Comum, torno a calá-lo, as lombadas dos livros irritam-me, o sofá demasiado fofo irrita-me, vou à janela espreitar a tranquilidade da rua, os carros imóveis sob os candeeiros, a pele lunar dos prédios, como farão os outros para aguentar a pastilha, os casais que conheço viverão intimamente satisfeitos consigo, lograrão lavar os dentes de manhã numa esperança relativa, qual é a solução quando nada mais há a conhecer, a descobrir, a inventar, foram quatro anos muito agradáveis, desculpa, mas acho melhor separarmo-nos, e a tua cara, de tacho na mão, boquiaberta de espanto, primeiro, a enrugar-se de dúvida, de incredulidade, depois, Deves ter bebido diz ela, Não bebi nada digo eu. De qualquer maneira guarda a conversa para logo que não tenho pachorra agora, diz ela."

António Lobo Antunes (1983)
Explicação dos pássaros
A perna acompanha o corpo e a dor. Nem metade do caminho fiz, não me perguntes quando chegarei. Põe a mesa só para ti. Hoje não como. Tenho mais de metade do caminho por fazer e toda a paciência gasta. Eu sei fazer acrobacias, mas hoje não. 

dezembro 18, 2015

PLAY Chopin Preludio em mi menor Po. 28 N.4

UM ABANDONO 

Um abandono em suspenso.
Ninguém é visível sobre a terra.
Só a música do sangue
assegura residência
num lugar tão aberto.

Alejandra Pizarnik (1936-1972)
Antologia Poética, O correio dos Navios, 2002

dezembro 15, 2015

PLAY Beck Everybody´s gotta learn sometime

ESTUDO
Através da janela
mando
a negra razão
falar com a 
paisagem.

Ernst Meister (1911-1979)
Rosa do Mundo, Assírio & Alvim, 2001

dezembro 10, 2015

Habitar a galinha doida que cacareja a nossa dor.
Ser galinha e picar a dor em terra dura, sem a furar.
Amar, somente amar, nada mais que amar (o que, enfim, restou).

©raquelsav
"Medir a felicidade. Que dizer destes fogachos transitórios? Não chega a penitência. Aos que têm o fogo das trovoadas, a cal nas sepulturas, como exercício do fogo verdadeiro (do inferno para sempre). Um nada, que flutua em nós, controla o acaso ou perde a ocasião (irrepetível). Fazer contas e errá-las: a soma que se chama alma. A bom entendedor meia palavra basta. Quanto ao resto, os vultos a arderem no desenho, quem levanta a mão contra o nosso corpo e o nosso gado? Quem se antecipa a Deus?"

Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979

©Angela Bacon-Kidwell



"Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: comprimento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos). Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humidade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva: como absorve ela o murmúrio dos móveis?"

Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979

"Tem a realidade o fascínio dum tesouro escondido? Creio bem que sim. E a entrega mecânica à tentação acaba por destruir-nos. O real não é diabólico em si mesmo. Longe disso. Mas podemos (oxalá não esteja a aproximar-me da confusão) contaminá-la sem saber."
Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979
"Porquê a lagoa tão pequena?
Ia chover. Lembrei-me com certeza duma gota de chuva. E tinha sede, já te disse. Quando temos sede, a água parece sempre pouca."


Carlos de Oliveira (1978)
Finisterra: Paisagem e povoamento, Sá da Costa, 1979