dezembro 23, 2015

"Vou-me embora, adeus, ou fico, qual é a alternativa, ir para onde, serei mais feliz sozinho, conseguirei alguma vez ser feliz com esta inquietação de sempre nas tripas, esta espécie de colite da alma, este desassossego de entranhas, rodo o botão do som, a adesão de Portugal ao Mercado Comum, torno a calá-lo, as lombadas dos livros irritam-me, o sofá demasiado fofo irrita-me, vou à janela espreitar a tranquilidade da rua, os carros imóveis sob os candeeiros, a pele lunar dos prédios, como farão os outros para aguentar a pastilha, os casais que conheço viverão intimamente satisfeitos consigo, lograrão lavar os dentes de manhã numa esperança relativa, qual é a solução quando nada mais há a conhecer, a descobrir, a inventar, foram quatro anos muito agradáveis, desculpa, mas acho melhor separarmo-nos, e a tua cara, de tacho na mão, boquiaberta de espanto, primeiro, a enrugar-se de dúvida, de incredulidade, depois, Deves ter bebido diz ela, Não bebi nada digo eu. De qualquer maneira guarda a conversa para logo que não tenho pachorra agora, diz ela."

António Lobo Antunes (1983)
Explicação dos pássaros