janeiro 29, 2016

[#6] palimpsesto

--> - Então?
- Já disse que não!
- Como não?
- Apaguei. Rasguei tudo. Lixo!
- Ahahah. Então e o "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser. Ontem- a palavra que branqueia o tempo e faz vacilar a dúvida e o erro que somos..."?
- Queres parar?
- Ah! Só tu é que me podes humilhar, é isso?
- Não me interrompas! Estou farto de te ouvir. 
- É tão aborrecido quando a bola passa para o nosso lado, não é?
- Não é nada disso! 
- Então o que é? "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser". És tão prosaico! Tão bonitinho!
- Pouco me importa o que achas ou deixas de achar. Mas dispenso diminutivos!
- Então explica.
- Pensei que não fosse preciso.
- Tu é que sabes ler as pessoas, eu não. Sou uma perfeita egocêntrica, que não ouve ninguém a não ser a si própria!
- "ouve" com ou sem "h"?
- Olha é com "c" - couve!
- Era só para não cairmos no ridículo de nos pormos a escrever meta-textos.
- Como aquela música, la-la-la-la-la?
- Qual música?
- Uma dos The Gift.
- Lembras-te de cada cromo.
- Nem é das piores. Ainda é do tempo em que a Sónia Tavares não se resumia a uma Ágata Gourmet.
- Romana, queres tu dizer?
- Isso, isso.
- Vou pôr no YouTube, espera um segundo.
- Desde que não seja a Gaivota.
- PLAY
- O que raio tem esta música que ver com a nossa conversa?
- Schiuu.
- Ahh, já entendi. Às vezes fazes umas associações de ideias interessantes, reconheço.
- Somos tão banais, não somos?
- Sim, somos um lugar-comum tão medíocre: Graças a Deus.
- A sério? Acreditas em Deus?
- É um modo de dizer. Sou da opinião do Musil, a este respeito.
- Quem é esse?
- Esquece.
- Como se isso fosse possível. Se me conhecesses, "esquecer" seria um verbo que jamais usarias comigo. Saberias da sua inutilidade - consigo ser muito teimosa.
- Dá-me um minuto. Hum, está aqui, vou ler-te:
      "Até aí, "Sua Majestade" era para ele uma fórmula sem conteúdo mas ainda em uso, tal como se pode ser ateu e, apesar disso, dizer "Graças a Deus"."

- "Ontem, a distância que criámos entre o que fomos e o imaginário que passamos a ser".
- Queres parar com isso?
- Só quando me explicares.
- Foi e continua a ser o maior enigma da minha vida.
- Ficou sem solução? Foi um erro?
- Fiz o melhor que pude. O melhor que sabia.
- E chegou?
- Se tivesse chegado, não estaríamos a falar nisso agora, não achas?
- Há qualquer coisa de sádico na natureza do ser humano, não há?
- Chama-se amor.
- Além de prosaico és lírico? Então, fodemos ou ficamos?
- Nunca amaste?
- Amei uma vez.
- E foi um erro?
- Não! Foi uma utopia. Contente?
- Porque haveria de estar contente?
- Gostas de me humilhar.
- O amor é uma humilhação?
- O amor não, a utopia talvez.
- E fizeste o melhor que soubeste?
- Não! 
- Porquê?
- Porque nada fiz! 
- Chega de sermos óbvios?
- Qual é o teu número afinal?
- Pode ser o último!
- Porventura não serei assim tão chata!
- Tens mais de ridícula do que de chata. Tens noção quão absurdo é inventares estes diálogos, não tens?
- Esta espécie de meta-solilóquios? Heit! deixa a minha meta-cabeça em paz e vamos foder.
- Foder a mente?
- Não, a memória! Ou o que dela resta.
- Engana-me, então: PLAY   
- Tens noção que isso é jogo sujo, não tens?
- Tão ridícula, meu Deus. Já devias estar tão habituada! Ajoelhaste-te? Agora, já sabes como termina a história!