julho 05, 2016

  "As trovoadas não param. Raios que matam gente e gado, incendeiam casa, fendem pinhais inteiros. O inferno a mudar-se, com armas e bagagens. É o que dizem nas igrejas.
   O riso franze-lhe o canto dos olhos.
   Aí tens a intuição. Aceita-a sem reservas.
   Mesmo que lamente o êxodo (e desconfio), dunas sobre dunas, a perder de vista, não lhe desagrada ver sua febre confirmada nos peregrinos, ter alguma razão.
   E as mulheres? Ficaram a cuidar do inferno?
   Não blasfemes. Partiram para sul, de filhos agarrados às saias. Têm santos a dois passos da porta. Nós escolhemos o norte, por ser mais longe.
   Pedem o quê?
   Clemência e chuva. Trazemos gado como oferenda.
   Ad petendam pluviam, claro.
  Um silêncio breve (a vibração da sala desaparece). Quando recomeçam, as vozes soam com rudeza.
   Fogo de sol a sol, relampejando nas enxadas que remédio. Na areia germina pouco pão e as regas, além da chuva, precisam de suor. Mas os lugares malignos em nossa casa, não os merecemos. Tanto sítio para pôr o inferno, e logo nos calhou a nós."
(...)

   "Vamos ao trabalho. Tragam-me um cordeiro, faz favor. E não se esqueçam: tosquiado.
   O amigo da família dirige-se à orla da floresta. Comprar um cordeiro aos peregrinos: fácil, à primeira vista; à segunda, nem tanto: existe um problema religioso importante.
   O gado já pertence aos santos e arriscar a alma, arriscamos, se valer a pena. Por trinta dinheiros, só quem nós sabemos.
   Quando fecha o negócio (tosquia incluída, de má vontade), não bate a cabeça contra as árvores, por vergonha: na feira, o mesmo dinheiro (e metade do esforço) davam sem exagero para um rebanho.
   Regressa, com o cordeiro ao colo (a criança continua a espreitar): cambaleia, sobre a álea aos ziguezagues; sapatos de calfe esfolados, meias de lã enroladas sobre os sapatos (Que largam um rasto de suor, uma baba de caracol). Nos últimos passos, levanta os joelhos à altura do queixo: única forma de aguentar o peso do cordeiro. Chegam, enovelados um ao outro. O amigo da família mal pode respirar.
   Aqui o tem. E não me agradeça (não é possível)."

Carlos de Oliveira (1978) Finisterra | 1979 | Sá da Costa