fevereiro 14, 2019


Acto Terceiro
 [Já estamos “em cima da hora”, a peça começa não tarda]

- Anda, veste o casaco.
- Não é preciso, não tenho frio.
- Anda, veste o casaco.
- Já te disse que não tenho frio.
- E eu já te disse que sou tua mãe, compete-me proteger-te, principalmente de ti própria. Veste.
             
       Quantos casacos teremos, teimosamente, deixado de vestir, mesmo quando nos sabíamos com frio? Quantas vezes insistimos na dor, e nela encontramos a melhor forma de estar? Quanta dessa dor não é uma cultura que "determina um conjunto de movimentos, um tipo de sofrimento"[2]? E quantas linguagens inventamos para a expressar? Se “conceber uma linguagem é conceber uma forma de vida"[3], quantas vidas terão ficado por criar?  Se “na sua necessidade de lidar com o coração humano em conflito, no seu desejo de reconciliar as contradições apresentadas pelo sofrimento, pelo medo e pela fúria, e na busca do bem-estar, os seres humanos optaram pela maravilha e pelo deslumbramento e descobriram a música, a dança e a pintura, e a literatura.”[4], por que razão não somos, diariamente, música, dança, pintura ou literatura? E se os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo[3], quão quadradas são as paredes que habito?  Se, de facto, "quando um grande artista fixou, pela imagem, um gesto ou um olhar, uma silhueta ou uma paisagem, escreveu um poema ou orquestrou uma sinfonia, ou quando um cientista encontrou uma explicação para um fenómeno da natureza, o fez obedecendo à voz interior dos seus impulsos geniais, numa situação de posse, de transe ou de sofrimento, de êxtase ou de amor”[5], por que não investimos na descoberta da melhor linguagem que nos assiste, ou que assistiria ao que, por dever, deveríamos assistir? Por que não criamos lugares seguros para o que mais estimamos e insistimos no “temos de ser” e “temos de parecer”, como se “a temporalidade do quotidiano não se reduz[ísse] a uma temporalidade cíclica, repetitiva, vivida exclusivamente no presente?"[6]
-  Mãe, está ali a menina das explicações.
-  Pois está, fui eu que pedi que viesse ver a peça.
- Vais dar explicações de Matemática na peça? (que saudades tive de te ouvir dizer, errada, mas tão deliciosamente – matemárica)
-  Sim.
-  Sim? Trouxeste os livros?
-  Não, a peça Tiques e Manias é a explicação.
-  Não estou a perceber nada.
- Um dia, eu explico-te – agora não, a peça está a começar. 

Congratulei-me com o sentido de oportunidade dos actores – pouparam-me a um longo discurso. Os actores entraram em palco e eu senti-me um deles, transportada pela sua energia. Resisto à razão, mas procuro-a, involuntariamente. Tento encontrar razões para o que sinto quando assisto a uma peça, quando leio, quando oiço uma música,  essa “adesão à ficção como uma espécie de estado hipnótico (...) uma perda temporária da autorreferência” [7]. E revejo-me nesse caminho onde me esqueço mas que me sinto, como em nenhum outro, verdadeiramente próxima de mim.
Ocorre-me Beckett, estou preocupada com o cão – ficou sozinho em casa, deve estar assustado.  E Beckett o dramaturgo, "no" Teatro da Trindade , essa viagem “À espera de Godot", onde me senti tão real, tão absurdamente real. Lembrei-me do que li num livro, há uns tempos: “O absurdo invade a realidade, o mesmo absurdo transforma o real, e o teatro que o contempla, por sua vez, tornar-se-á realista" [8]. 

- Mãe, vamos para casa? Estou cheia de sono e quero ver bonecos. 
- Tens razão, foi um dia grande. 
- Mãe, os dias são sempre iguais. 
- Sim, mas há uns maiores do que outros.
- Sabes o que eu gostava de ser?
- Quando fores grande?
- Eu já sou grande!
- Pois és.
- Não,  o que eu gostava de ser sempre.
- Professora de animais?
- Gostava de ser um jogo de computador.
- Que coisa mais estranha, porquê?
- Porque assim tinha muitas vidas.
- E não te chega uma?
- Pois, tem de chegar, mas é pena.
- Pena porquê?
- Porque cada dia que passa é único. Não vou voltar a viver este dia, este momento. E isso é pena.
- Teres pena é meio caminho andado para não viveres o momento.
- Mas eu estou a gostar da minha vida de criança. Já fico contente com esta.
- Nada me deixa mais feliz. 
- Gosto quando me dizes poesia.
- "Não, não vou por aí,..."
- Esse não, ele acha-se muito convencido quando, na verdade, nunca irá saber se o caminho de que lhe falavam era o certo, ou não. 
- Nunca confies num poeta.
- Eu sei, já me disseste - pode escrever cão e querer dizer gato.
- Como o Beckett?
- Oh mãe, o Beckett é mesmo um cão.
- Mas às vezes pensa que é gato. Qualquer dia parte alguma pata, no seus equilibrismos.
- Também não me importava de ser um gato.
Ocorreu-me  que "Não se pode morar nos olhos de um gato" [9], e revivi, em segundos, tudo o que esse verso encerra em mim, de mim, para mim.
- Tenho fome, o que é que vamos comer quando chegarmos a casa?
- “Nada a fazer”.

[Cai um pano. E outro pano. É o fim do ato terceiro e, com ele, de nós os três aqui - eu e a minha filha – há uma realidade que nos espera.]
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podem chamar-lhe realidades
até pode parecer que o são
chego a suspeitar que realmente existam
por vezes até sinto apalpar a realidade
mas, depois,
nasce o poema.


PLAY Tiago Bettencourt | Poema do desamor

[1] Schank, R. (1990). Tell me a story - narrative Intelligence. Illinois: Northwestern University Press.
[2]  Tavares, G. M. (2013). Atlas do corpo e da imaginação. Alfragide: Editorial Caminho.
[3]  Wittgenstein, L. (2002). Investigações Filosóficas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Wittgenstein, L. (2002). Tratado Lógico-Filosófico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
[4]  Damásio, A. (2017). A estranha ordem das coisas - a vida, os sentimentos e as culturas humanas. Lisboa: Temas e Debates & Círculo de Leitores.
[5]  Fonseca, A. F. (1990). Psicologia da Criatividade. Lisboa: Escher, Publicações.
[6]  Pais, J. M. (2007). Sociologia da vida quotidiana (3.ª ed.). Lisboa: ICS.
[7]  Frazzetto, G. (2014). Como sentimos - o que a neurociência nos pode - ou não - dizer sobre as nossas emoções. Lisboa: Bertrand Editora.
[8]  Fadda, S. (1998). O teatro do absurdo em Portugal. Lisboa: Edições Cosmos. 
[9] Alexandre O'Neill . "Poema do Desamor"