abril 12, 2020

©raquelsav |abril2020


Há um método doloroso das coisas singulares e belas:
enquanto o ventre se veste de fogo e luz,
do dorso respiga a seiva aspergida.

A mão não se lava com a chuva que o vento engole,
nem a voz cerzida se faz ouvir na noite clara.

Mas há um rito na passagem:
entre a pétala e o espinho 
-  arde o milagre da vida.
  


abril 11, 2020

COMPOSIÇÃO DO LUGAR

Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam
domésticas insígnias baixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte
em nenhum outro lugar me edifiquei
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida

Ruy Belo | Todos os poemas | Assírio & Alvim

"O medonho sentimento de incompletude de que nasce um antagonismo entre nós e o mundo talvez pudesse desaparecer, desde que um dos dois se modificasse: ou o mundo, ou nós; quimeras de insensatos, que eu execrava. No entanto, tendo chegado depois de uma longa introspecção a essa convicção de que, se o mundo se modificasse, eu deixaria de existir, e reciprocamente, descobri aí de modo bastante paradoxal uma reconciliação, uma possibilidade de compromisso. No sentido em que a coexistência era possível entre o mundo, por um lado, e por outro o pensamento de que não poderiam amar-me tal como eu era. A armadilha na qual o enfermo acaba sempre por cair não é a de resolver o antagonismo que o opõe ao mundo mas assumir integralmente esse antagonismo. E é por isso que o enfermo é incurável... incurável..." 

Yukio Mishima | O templo dourado | Assírio & Alvim | p.84

abril 09, 2020


"283. A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ser alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas de espírito, todas da alma; és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. (...) Nascer liberto é a maior grandeza do homem."
Fernando Pessoa (Bernardo Soares) | Livro do desassossego |Assírio & Alvim